Numa folha qualquer eu desenho…
Há dois meses, lá na comunidade, surgiu a idéia de fazermos o lançamento do Blog de Papel na Feira do Livro de Porto Alegre. Coincidentemente, um leitor entusiasmado deste blog havia sugerido a um dos organizadores que me convidassem para um dos eventos da feira (uma idéia que, até então, eu não estava levando a sério). Por conta do forte ritmo de trabalho, o projeto gráfico dos livros estava atrasado mas, mesmo assim, me prontifiquei a entrar em contato com a organização e ver o que era possível para o lançamento.
Uma ligação e alguns e-mails depois, a proposta era que eu participasse de uma mesa de discussões sobre o processo editorial das novas editoras. O que, vindo de mim, só podia ter uma resposta naquele momento: “claro que não, minha senhora!”. Mas eu respondi diferente. Respondi que a idéia da mesa era boa, mas que poderia ser muito mais interessante para o público se discutíssemos, por exemplo, a interferência dos blogs no processo editorial e literário. Mais alguns e-mails insistindo nessa temática e convenci a moça de que me chamar para o ringue seria mais atraente se eu pudesse não apanhar (ou bater) sozinha. Além do mais, com o Milton, a Ane, a Ticcia e o Dahmer inscritos na mesa de discussões sobre literatura e internet, eu poderia amarelar e ficar em São Paulo sem causar nenhum estrago. Ela aceitou. E, por pouco tempo, eu respirei aliviada…
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um…
Finalizar os dois livros foi exaustivo e, como sempre, meio enlouquecedor. Poucos dias antes do lançamento eu dava graças a deus por ter tido o bom senso de sugerir a mudança de pessoas e assunto da mesa. Depois do caos, se eu tivesse cometido o despautério de aceitar a proposta inicial, o que eles veriam seria uma louca de olhos fundos mandando a merda qualquer papinho de processo editorial, blog, livro e o diabo a quatro.
Pensei realmente em não ir à Porto Alegre na data prevista. Cheguei a cancelar o vôo algumas semanas antes. Já tinha respostas prontas alegando a morte de algum parente, um tumor no cérebro recém descoberto ou qualquer outra coisa que as pessoas respeitam como desculpa por achar que ninguém é louco de inventar uma merda desse tipo. Mas foi aí que eu me vi fazendo o mesmo que faço há anos: recusando. Recusando oportunidades, presentes e pessoas. Lembrei dos meus poucos amigos gaúchos, lembrei do carinho que sempre senti por eles mesmo sem conhecê-los… “Mas e se de perto eles forem esquisitos? E se forem chatos? E se eles fugirem de mim igual eu já tentei fugir de alguns amigos que vieram pra São Paulo? Dane-se, eu vou”.
Acertei datas, horários, passagens e hospedagem.
Nessa estrada não nos cabe, conhecer ou ver o que virá…
Eu tenho certeza absoluta de que, se houver algum tipo de consciência depois da morte, a primeira coisa que eu vou pensar é: “acho que esqueci alguma coisa…”.
É uma sensação horrorosa. Arrumo tudo por horas, cuido de cada detalhe, me esforço para não cometer os mesmos erros, procuro organizar minha mente antes da bagagem e, quando eu vejo, descubro que deixei para trás minha identidade. E sem identidade, sem passagem…
Passei horas andando de um lado para o outro e tentando argumentar (com pessoas nem um pouco interessadas) que meus compromissos eram mais importantes do que quem eu era ou deveria ser. Em vão, claro. Perdi o vôo e alguns anos de vida graças a tensão que eu mesma causo ao meu corpo nessas situações.
Quatro horas depois, sem dormir há um dia e meio, fui transferida de aeroporto e me vi entrando em um avião com homens de meia-idade, ternos acinzentados, ares de responsabilidade e seus cheiros de perfumes caros. Entre eles, no máximo, meia dúzia de mulheres com terninhos de senhoras que tentam se igualar a tudo que é masculino, expressões de poder delineadas com maquiagem e um leve toque de fracasso por viverem sonhos de mentira. Eu olhava ao meu redor e sentia vontade de sacudir todos eles. Sacudir e mostrar que eu não era a única naquele lugar que havia esquecido da própria identidade. Eu precisava era me sacudir…
Comecei a achar que aquilo estava com cheiro de praga. Meu pavor de avião soltava uma gargalhada entre os meus pensamentos e me dizia “bem-feito” o tempo inteiro. Eu não queria morrer com aquela gente… Preferia um ônibus de excursão ao Paraguai, do que aquela reunião de diretoria. Não conseguia parar de pensar que, se a droga do avião caísse e se acontecesse alguma coisa depois da morte, a resposta para a minha pergunta pós-morte seria: “sim, você esqueceu. Esqueceu de viver, sua trouxa!”.
Coloquei os fones de ouvidos para espantar as idéias e, assim que aumentei o volume, a voz doce do Toquinho me dizia que “… o futuro é uma astronave, que tentamos pilotar. Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar…”.
Abri a minúscula janela ao meu lado, aquietei o corpo e me permiti contemplar um pouco da mistura que as águas e a cidade causavam antes do pouso, antes que eu perdesse a chance de lidar com meus medos, antes de qualquer descolorirá…
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel…
Uma hora e meia depois de um vôo com menos turbulências do que as do meu cérebro, cheguei em Porto Alegre. Cheguei com a arrogância paulista que me é peculiar: peguei um taxi, pedi ao motorista que seguisse para o hotel e, depois de dez minutos de paisagem urbana, lá estava eu silenciosamente agradecendo por viver na maior cidade isso, melhor cidade aquilo… Reclamei do calor, resmunguei que o hotel parecia melhor pela internet, peguei a chave e subi para o quarto. Cama boa, lençóis bons, mas deitei e não consegui dormir. Entediada com a idéia dos compromissos e minhas unhas pra fazer, levantei e fui atrás de uma manicure. Para a minha alegria, a manicure estava atendendo outra pessoa e, como eu não queria esperar, minha pressa fez com que eu deixasse o serviço pago e solicitasse um agendamento de horário que não permitisse atrasos. Voltei para o hotel e, finalmente, dormi… duas horas somente, mas dormi.
Vamos combinar? Eu bem que teria merecido fazer parte do funeral coletivo de executivos sem vida própria que eu desenhei durante o vôo. Pior do que a minha arrogância só mesmo a minha estupidez de deixar o serviço pago e não conseguir voltar na hora marcada. Perdi o dinheiro…
É tanto céu e mar num beijo azul…
Só o Natalino e o Rube sabiam o porquê de tanto mau humor. Eram as duas vírgulas… Eles tinham pedido pra eu esquecer, deixar pra lá e nem escrever sobre isso, mas eu não conseguia esquecê-las. No dia anterior, eu havia recebido os livros e, tanto mexi, que duas vírgulas a mais saltaram do livro. Gramaticalmente elas até podiam não ser consideradas como erros, mas aquele excesso me tirou do sério porque não importava se estava certo ou não. Eu tinha deixado bem claro que era para exclui-las. Mas do que adiantaria? Depois que um livro está impresso, não interessa quem fez a merda, o editor é sempre o culpado.
Maridon chegou em casa e eu chorando… Desesperado e achando que era alguma tragédia, ele: “que foi!?”, e eu: “as vírgulas…”. Pode parecer exagero, mas não é. Esse negócio de publicar livros é um sofrimento desgraçado. A gente sofre quando escreve, sofre na preparação dos arquivos, nas inúmeras revisões e sofre esperando que o livro seja bem recebido por todos. É desgastante, cruel e, mesmo quando tudo corre muitíssimo bem como foi o caso do Malvados e do Blog de Papel, duas vírgulas indesejadas são capazes de destruir todo o suor e o coração dedicados.
De uma América a outra eu consigo passar num segundo…
No hotel, quando eu acordei, estava disposta a destruir as vírgulas assim que chegasse em São Paulo. Porém, antes, eu precisa de óculos escuros… Precisava esconder as noites mal dormidas, as marcas das lágrimas do dia anterior e… E, por mais arrogante que eu estivesse naquele momento, alguma coisa em mim estava sarando e pedindo que eu relaxasse, que tudo daria certo e que eu não precisava esconder nada não.
No centro de Porto Alegre – caminhando em direção a feira – entrei em uma loja, experimentei alguns óculos, escolhi um e saí de lá com abraços de despedida que mais se pareciam com abraços de velhas amigas. Não me perguntem o porquê. Fiquei constrangida no começo, mas depois fiquei me perguntando porque diabos eu me armo tanto contra as pessoas. Eu não entendi porque aquelas vendedoras me trataram daquele jeito… Foi tudo tão sincero e leve que eu nem sequer cogitei a possibilidade de ser estratégia de venda. Tão sincero que, inconscientemente, abaixei minha guarda para a cidade, para as pessoas e deixei de lacrimejar por vírgulas.
Vai voando, contornando a imensa curva norte-sul…
Cheguei um pouco antes no Memorial do Rio Grande do Sul: a sala vazia, quatro cadeiras para os autores do Blog de Papel e uma cadeira para o Dahmer. A Ane, a Ticcia e o Milton chegaram em seguida. O André, logo depois, tremendo. Não nos conhecíamos e ele parecia uma criança perdida. Fiquei me perguntando onde ele escondia sua dose de “malvado”. Que menino doce que é o André… Maridon se prontificou a tranqüilizá-lo e eu pensei: “daqui a pouco quem vai começar a tremer sou eu. Faltam cinco minutos pra isso começar e não vai vir ninguém. Mico! Fiz tudo errado”.
Foi o tempo de pensar, virar as costas e ver o cenário virar do avesso. Deixei minha cadeira de “escritora” vazia e fui cuidar dos meus escritores que estavam sendo atacados por câmeras de TV, jornalistas, pessoas pedindo informações. Filas de gente para os dois livros. Os dois esgotaram em menos de trinta minutos. A Ane, Ticcia, Milton e o André foram maravilhosos. Mesmo sob tensão eles conseguiram ser atenciosos com os leitores, imprensa e autografaram os livros como se tivessem nascido para aquilo.
Passada a hora dos autógrafos, corremos para a mesa de debate sobre literatura e internet.
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva…
Elevador quebrado, tasca o povo subir lances e lances de escada. Era no último andar. Quando eu cheguei, a sala já estava cheia. Para mediar a mesa os organizadores haviam chamado o professor Armindo Trevisan. Talvez, minha maior surpresa do dia. Aos setenta e poucos anos, ele não só mediou com maestria uma mesa sobre um assunto que tinha pouco conhecimento, como demonstrou um fascínio tão grande pelas novidades apresentadas que fez com que ele se empolgasse e esticasse conosco até o bar do hotel.
E, como se não bastasse sair de lá com a sua benção, entre a redenção do papel pelos blogs (que o Wagner defendia) e a salvação do livro pelos blogs (que eu defendia), ouvi o Armindo contar (sem saber das minhas virgulas) de um livro dele que foi impresso com um erro. Depois de ter ficado mal por um tempo, ele decidiu ouvir sua esposa que dizia pra ele ter a humildade de reconhecer seu erro e deixá-lo onde estava. Juro, foi por um triz que não comecei a chorar no raio da mesa. Eu sei, louca seria apelido.
Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar…
No dia seguinte, acordei melhor, acordei em paz. Que cama boa, que ducha boa, que hotel ótimo, que atendentes incríveis. Uma cidade de gente e lugares impressionantes e era dia de ir embora… E deu tristeza, sabe? Sabe tristeza de felicidade? Eu só queria saber de andar por aquelas calçadas iluminadas, ver mais das pessoas, conversar mais… Um taxista nos aconselhou a dar uma volta pelo Guaíba antes de retornar. E foi o que fizemos: subimos no segundo andar do Cisne Branco e bebemos a viagem.
Eu estava quieta… Mas, como sempre que eu fecho a boca acontecesse alguma coisa mais estranha do que o meu silêncio, olhei para o chão e: “Eu estou pisando em mim!”. Sim, eu estava pisando em uma folha de jornal com a minha cara estampada. Uma chamada sobre a feira com uma foto da mesa de debate em destaque no Correio do Povo. Pode? Acabei de contar a história para o meu irmão e ele disse que isso é post (expressão que a gente usa pra dizer que uma história é mentira cabeluda). Ainda bem que maridon é testemunha.
Com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida…
Correu tudo surpreendentemente bem. Dos óculos em diante, foram só abraços. Eu, que achava muito pouco provável fazer amigos verdadeiros depois dos trinta, descobri que o Ronaldo existe de verdade. E que ele é a pessoa doce, linda, engraçada e de carne, de ossos, e dono do coração que eu queria ouvir sempre que ficávamos tristes ou felizes. Dono de uma lealdade tão evidente que eu enxerguei mesmo cega por meus receios virtuais. Um anjo de pessoa que é querido por todos os encantos que ele oferece quando estende seus braços, e… e verde. 🙂 Meu verde, seu verde. Minha casa, sua casa. Seus amores, meus amores. Estarei sempre aqui, estarei sempre aí. Você sabe. Você sempre sabe porque pouquissimas pessoas no mundo são tão atentas quanto você. Pelo carinho, dedicação, por compreender o meu coração, rir da minha mente e permitir que eu goste tanto de você.
Descobri a timidez e sensibilidade inacreditáveis do Milton. Conheci um pouco da sua gentileza, insegurança e a felicidade que ele é capaz de sentir quando a vida lhe sorri. Conheci um pedaço dele através da leveza de espírito do Bernardo e da graça cativante da Bárbara. Percebi o quanto ele está em paz com a Claudia e com ele mesmo neste momento da vida. E que ele pode, num passe de mágica, tornar-se um menino de dez anos. Perguntem para o pessoal do Ponto Frio…
Observei de perto e ainda assim distante, a elegância física, verbal e textual da Ticcia. Ela radiava beleza, paixão e charme por onde passava. E que sobrancelhas, meu deus! Eu morri de inveja daquelas sobrancelhas de megera que ela exibe. Queria ter passado mais tempo contigo… Aliás, com você e com a Ro. De ontem pra cá, tô viciando no megeras. É incrível como eu deixo coisas boas passarem batidas por mim… Ódio.
Sai de Porto Alegre com saudade da Ane. Queria ter te ligado antes, conversado antes, não ter oferecido tanta resistência… Queria que aquela última tarde de cerveja tivesse atravessado a noite, queria ter tempo para janeiro, fevereiro e março… A Ane é contagiante, tem um sorriso franco, uma simpatia única. Ela é uma pessoa rara. Divide os holofotes, torce junto, luta junto, reconhece melhor do que ninguém o trabalho e o talento daqueles que estão ao seu lado. Num universo onde é tão dificil lidar com o ego, a Ane é um exemplo a ser seguido. É uma estrela que brilha mais, porque capta melhor as luzes a sua volta. A Ane abre passagem, faz acontecer, dá créditos para quem merece créditos. Eu adorei você, menina. De coração. Você e sua irmã. E não brigue com ela pelas fotos perdidas. Sem ela, só nos restaria nossas memórias.
E o Dahmer… Aqui em São Paulo vou ver se consigo conversar mais do que dez minutos com ele sem ser interrompida por algum jornalista ou leitor. Não é todo dia que eu vejo um homem se emocionar com seus leitores, com a vida e quando fala sobre a mulher que ele adora. O André é um cara apaixonante, vibrante e que faz a gente ter orgulho de qualquer trabalho juntos.
Maridon, maridon… O que seria de mim sem esse homem? O que teria sido desse lançamento? Meu norte, sul, leste, oeste…
No mais, queria pedir desculpas pelas desculpas que eu dei para não autografar os livros. Eu não sei fazer essas coisas… Acabei vistando o livro da Vanessa. Sabe lá o que é isso? Papelon, sorry Vanessa. Tô me sentindo ridícula por isso até agora. E dei um “obrigada” patético para a Belly que foi meiga, gentil e encantadora o tempo todo. Aliás, todos foram encantadores. A Lívia, a Vanessa, o maridon da Vanessa, a Belly, Natan, César, João, Mauricio, Dante, Cardoso, o Mauro e sua família linda e me desculpe se eu esqueci o nome de alguém… Todos os que eu pude conversar um tiquinho e cada um do seu jeito, me fizeram muito bem. Obrigada, obrigada de verdade. Por terem enchido o meu coração de uma alegria que há muitos anos eu não sentia. Aqui em São Paulo, principalmente com a vida que eu levo e o distanciamento que cultivamos, é muito comum esquecer o significado e a importância da amizade, do gosto que o começo delas podem ter. Obrigada por me fazerem olhar pra este lado tão abandonado da minha vida. Eu cheguei em Porto Alegre chorando de raiva de mim mesma e sai dai chorando escondido de vergonha do Rube. Não queria que ele visse que uma mulher grandalhona como eu, com mais de trinta, ainda chora por sentir essa coisa boa que caminha tão próxima do amor. Chorar por vírgulas tudo bem, mas por amizade seria uma novidade. Obrigada… Por terem me devolvido uma pessoa melhor e cheia de saudade de vocês e dessa cidade absurdamente maravilhosa que vocês moram.
Belly, viu como não era mentira? O que mais eu podia dizer além de obrigada?
Ah, detalhe: Cheguei em casa, liguei por ligar a TV e comecei a desfazer as malas. Na TV, um especial sobre o Érico Veríssimo. Na mala, a chave do quarto do hotel que eu esqueci de entregar quando fechamos a conta. E descolorirá…