Os casamentos que eu cliquei (Post II)

Pássaros feridos, o retorno


Enquanto todos cumprimentavam os noivos, fui fazer contato com o padre.
– Olá, meu nome é Alessandra. Sou amiga e fotógrafa dos noivos e…
– Si, si, eu percebi a senhorita fotografando.
Minha bochecha vermelho pimentão sorriu.
– Percebeu? Que bom!
Agradeci a deus pela cara de pau que me deste e continuei:
– Como é mesmo o nome do senhor?
– Encantado, Alessandra. Me chamo Giuseppe.
Eu resisto a qualquer tentação, mas sotaques e outros idiomas são golpes baixos. Um padre chamado Giuseppe, com
sotaque italiano, de olhos azuis, que beija minha mão enquanto diz “encantado”, era abusar do meu credo. Perdi a
noção do ridículo e desatei a falar bobagens:
– Linda cerimônia! O senhor é bom nisso… quer dizer, pode ser bom em muitas outras coisas. Já pensou em mudar de
profissão?
Giuseppe soltou uma gargalhada e colocou a mão sobre o meu ombro. Era o tipo de homem que encostava em uma mulher
sem ser abusado ou inconveniente. Sabia a hora de tocar sem desrespeitar o espaço pessoal.
– Non, eu estou feliz com a minha paróquia.
– Imagino que a paróquia também esteja muito feliz com o senhor. Daqui a pouco, até eu, viro beata!
– Será um prazer.
A palavra “prazer” saindo da boca do padre, mesmo que para expressar o desejo de me ver frequentando a igreja, era
desconcertante. Precisei respirar fundo e desviar os olhos daquela boca européia.
– Hum…sei. Mas me diga padre, o senhor fala italiano?
– Nasci em Piacenza na Itália, mas…
– Piacenza…ahn…adoro italiano! Perdão, quis dizer o idioma italiano. Aliás, o senhor não estaria interessado em
dar aulas particulares de italiano? Pode ser uma segunda opção de trabalho, um extra. Uma grana a mais no fim do
mês. Nada que lhe tome muito tempo, umas três aulas por semana no primeiro mês que podem ser reduzidas a uma vez por
semana depois de trinta dias. É o suficiente! Ou eu parlo ou lhe digo arrivederci. O que acha?
O padre caiu no riso. Bom sinal, eu o divertia.
– Non, vim para o Brasil quando era um bambino, no falo mais italiano tão bem. Più successivamente non necessito del
dinheiro Alessandra.
Uma intervenção divina, por favor! Aí já era demais! Além de tudo, o homem era um idealista, não ligava para bens
materiais.
– Ahn… bambino… sei. Padre o senhor me perdoe a pergunta… o senhor e deus, caso ele esteja olhando, mas o
senhor é muito bonito pra ser padre. Por que não desiste?
Nesse momento misturado com o riso do padre eu ouvia os risinhos de meia dúzia de amigas que se engalfinhavam entre
uns arbustos para me ver em ação. O padre, por sua vez, sutilmente, pegou minha mão, olhou nos meus olhos e, com
aquele sotaque irresistível, se aproximou do meu ouvido, falando baixinho:
– São seus olhos menina. Tu és una ragazza veramente encantadora, mas acho melhor irmos para o salão de festas atrás
da igreja.
Era óbvio que aquilo tinha sido uma cantada! Ninguém sussura em italiano no ouvido de uma garota e depois vem com a
desculpa de que é padre. Bingo! A próxima versão de “Pássaros Feridos” estava prestes a se concretizar.
______



Escrito pela Alê Félix
27, dezembro, 2002
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Os casamentos que eu cliquei

O pecado morava na igreja

– Ale, quanto você cobra pra fotografar meu casamento?
– Puta que o pariu, Tina! Já falei um milhão de vezes que eu não suporto fotografar casamento de amigos. Custa me
convidar pra festa sem que eu tenha que trabalhar?
– Tá bom, tá bom… não está mais aqui quem falou.
– Tá, tá ,tá… eu vou, eu fotografo…
– Agora não precisa mais, né? Depois dessa, você acha que eu vou querer que você fotografe?
– Ai, nem começa! Sai pra lá com essa frescura! Já disse que fotografo, agora não me enche.
– Vocês duas querem parar de falar? Estão atrapalhando o resto da classe.
Fizemos silêncio depois do esporro da professora e não tocamos mais no assunto, nem antes, nem depois do casamento.
Cursávamos o segundo colegial, era todo mundo muito novinho e metido a gente grande, mas a Tina decidiu superar a
maturidade ilusória de todos nós e foi a primeira da turma a casar. Sem gravidez, sem gravidade, sem necessidade
alguma, casou pelo simples fato de estar apaixonada e, como paixão não se discute, fomos todos festejar o matrimônio
da Tina e do Carlos.
E lá fui eu, com a câmera na mão, esperar a mulher entrar na igreja. A (cre)Tina atrasou uma hora e meia, mas chegou
radiante para alívio do noivo que já manifestava um certo medo de levar um balão.
O Santana preto com vidros fumê, top de linha daquele ano, estacionou na porta da igreja com a noiva tremendo e
lacrimejando. Me preparei para iniciar a sessão de fotos, quando chega a minha amiga Rita, toda espevitada e
desajeitada:
– Ale, vou ser sua assistente.
– Rita não precisa, não tem nada pra você segurar.
– Eu arrumo o vestido da Tina quando ela chegar no altar.
– Rita você vai cair e se espatifar no meio da igreja. Fica quieta e me deixa fazer as fotos.
– Nem vem, esta pode ser a minha única chance de entrar na igreja com todos de pé, a me admirar.
– Você quer dizer, admirar a Tina, né?
– É, e logo depois vão olhar pra belezura aqui.
– Talvez você tenha razão, acho pouco provável que alguém se submeta a casar com você um dia. Vem, vem logo que é a
sua última chance mesmo.
As portas da igreja foram abertas, os padrinhos a postos, o Carlos emocionado no altar, a grande porta se abriu e,
ao invés da noiva, o que se viu foi a Rita correndo com cara de papaléguas entre uma extremidade e a outra da porta
de entrada da igreja. Em seguida, ao som de Endless Love, apareceu finalmente a Tina.
Toda a mulherada do primeiro e segundo colegial aos prantos, até a passa mal da Rita, soluçava atrás de mim. Eu
disparando meus cliques quando, de repente, com o olho colado no visor, fiquei parada sem conseguir bater a foto.
– Que foi, quebrou a máquina?
– Ãnnn ? Que é Rita?
– Fala baixo. Que é que você está olhando? Por que não tira logo a foto?
– O Padre.
– O quê?
– Ri, olha este padre! O homem é lindo!
– Era o que me faltava! Tá louca? O cara é padre, sua blasfêmica!
– Pelo amor de deus Rita! Se diz blasfemadora, sua anta!
– Eu falo do jeito que eu quiser. É cada uma que eu vejo! Isso que dá ser pagã, é uma falta de respeito com os
funcionários de Deus. Você vai virar churrasquinho do capeta quando morrer.
– Que funcionário de deus o quê? E para de me chamar de pagã na casa de deus que ele pode passar a prestar atenção
na minha existência.
– Pagã! Pagã! Pagã! Pagã!
– Dá pra falar baixo? Tá todo mundo olhando, sua tagarela.
Deixei ela falando sozinha e voltei a fotografar e a olhar para o padre bonitão pelo visor da câmera. Não era fácil
desgrudar os meus olhos daqueles brilhantes olhos azuis. Eu sorria, disparava flashes e mais flashes, andava de um
lado pro outro e nada do padre me dar bola. Não que ele devesse, mas eu precisava tentar. Nunca compreendi os
desígnios da igreja católica, muito menos a teoria dos pecados. Naquele momento, pecado era aquele padre ter aderido
ao celibato.
Passei toda a cerimônia me perguntando o que o teria transformado em um padre. Devia fazer fila de mulheres na porta
da igreja para pedir-lhe a benção.
Fim do casório e fim do meu tempo para encontrar as respostas para os porquês da opção profissional do padre. Decidi
partir para o plano B: o diálogo… ou seria a conquista?
____________________________>>>> Continua.



Escrito pela Alê Félix
26, dezembro, 2002
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Estava aqui me perguntando o que escrever em um blog na véspera de natal. O que eu queria mesmo, era postar umas
histórias engraçadinhas de casamentos que eu já fotografei, mas a que eu estou terminando é muito religiosa para o
dia de hoje. Vou deixá-la pra depois, antes que eu pareça uma tipica pagã. Em breve eu devo postar uma série de
histórias sobre os casamentos da minha época de fotógrafa. Preparem-se para o “Albuns de Casamento, I, II, III, IV,
XIX e por aí vai.” Mas vamos voltar ao Natal…
A grande verdade é que o Natal, para mim e para muitos outros revoltadinhos socialistas como eu já fui, não passa da
grande festa da manipulação. Nunca consegui compreender como conseguiram dar um ar tão pesado para estas
comemorações de final de ano..
Festas de confraternização, ceia de natal, necessidade de unir a família, obrigação de dar presentes, participar de
amigos secretos, distribuição de beijos e abraços com cara de fim de mundo e, no final, é só mais um ano.
Faço parte de uma família que liga cada vez menos para estas datas. Não por tradição, mas por cansaço. Meus pais bem
que se esforçaram: saíamos para fazer compras de roupas, sapatos, presentes. E nas noites de Natal íamos sempre para
a casa dos meus avós. Todos arrumadinhos, penteadinhos de cabeleireiro, cheirando a loja de shopping e com vários
embrulhos de Papai Noel. A mesa farta de comida, a família unida, tudo certinho, com jeito de inverno europeu num
verão de quarenta graus, mas por algum motivo isso tudo começou a ficar insuportável com o passar dos anos.
Não sei se por conta da falta de crianças em casa, se por conta da fartura da mesa que gerava sobras constrangedoras
ou se foram as dificuldades para manter a idéia de união. Sei que, há muitos anos, ninguém se importa. Mas, mesmo
assim, todos sentem culpa.
É esta sensação que me incomoda. Todo mundo se sente culpado no fim do ano e tudo contribui para que as pessoas se
sintam assim. Começa com este papo do nascimento de Jesus, essa coisa dele ter morrido crucificado por nossa causa.
As pessoas carregam a cruz da história bíblica de Jesus até hoje! Se ele foi quem foi, duvido que ele ficaria
satisfeito ao ver o que fizeram da sua estadia na Terra.

Pra não dizer que não falei das boas lembranças

Eu tinha onze anos e meu pai tinha acabado de construir uma casa de frente para a nossa e no mesmo terreno.
Uma família vinda do Norte soube da casa e quis alugá-la. Meu pai, movido pela possibilidade de receber uma grana a
mais por mês, ignorou o fato de dividirmos o quintal com desconhecidos e alugou a casa.
Um marido, uma esposa grávida, três filhos com idades entre três e seis anos e um cachorro vira-lata (nós tínhamos
uma dobermann.).
Logo depois que eles mudaram, vieram as festas de fim de ano. Na véspera do natal, meus pais, na tentativa de unir
as famílias um do outro, acabaram discutindo. Meu pai, bravo, saiu de casa e não disse para onde ia e minha mãe
ficou, lá, desolada perante os quilos de peru que havia assado.
Nove horas da noite e eu fui dormir. Acordei uma hora depois com barulho de música no último volume e um rebuliço de
gente. Nossos vizinhos convidaram todos os parentes, amigos e retirantes para passarem o natal na casa deles,
conseqüentemente, no nosso quintal.
Fiquei putíssima! Minha mãe triste, meu pai fora de casa e aquele povo que mal nos conhecia fazendo aquele auê na
nossa casa. Fui em direção à casa da frente com um quente e dois fervendo, mas o quintal estava tão abarrotado de
pessoas felizes que antes que eu conseguisse localizar alguém responsável por aquela situação, acabei dançando meia
dúzia de forrós.
Vi meus irmãos no meio da festa se divertindo e fui atrás da minha mãe. Entrei em casa pela cozinha e a vi sentada
olhando para a mesa que ela havia preparado com tanto carinho.
– Não vai vir ninguém aqui em casa?
– Não.
– E o papai?
– Não sei…
Não pensei duas vezes: peguei uma travessa de quitutes e ajeitei sobre a cabeça. Minha mãe reagiu à cena e seguiu
atrás de mim:
– Alessandra, onde você vai com essa comida?
– Alguém tem que salvar este dia de merda. Vem mãe, bóra levar este monte de comida para o povo comer.
Sai de garçonete servindo a vizinhança que se espremia entre as duas casas, quando ouço a voz da minha mãe:
– Quem quiser se servir fique à vontade, tem cerveja e refrigerante aqui na geladeira.
Em um segundo, a festa se espalhou pela nossa cozinha, em um segundo não lembrávamos mais dos contratempos das
últimas horas, em um segundo a casa estava cheia de gente alegre e sem as firulas das festas de natal tradicionais.
Meu pai chegou no momento da confraternização entre as duas casas, vi ele olhar para minha mãe no meio da multidão,
beijá-la no rosto e puxá-la pra dançar.
Acho que foi naquele dia que eu aprendi a dar valor para uma boa festa. Também tratei de não dar tanta importância
para as pressões de fim de ano. Passei a pensar nessas festas como se elas fossem festas de forró, o resto é só
protocolo.



Escrito pela Alê Félix
24, dezembro, 2002
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Minha voz está lá no blog do Marmota. A idéia do
mocinho ficou muito legal! Não vão lá ouvir minha voz, não? O que estão esperando? Procurem pelo post de ontem. Ah!
A voz do maridon também está lá. :o)
Volto já!



Escrito pela Alê Félix
24, dezembro, 2002
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Esse negócio de blog é um pesadelo, estou completamente viciada. Fico escrevendo de madrugada, lendo outros blogs,
procurando imagens, aprendendo HTML, mexendo no meu template. É enlouquecedor e consome parte da minha vida útil.
Minha cabeça passou a funcionar de forma diferente desde que abri este blog. Ainda não tenho certeza se está sendo
bom ou ruim, mas ele tem revirado meu ego, meu dia e minha cara. Por algum motivo, esta merda me deixa com cara de
mulher feliz.
Às vezes me sento ridícula, egocêntrica e sem
autocrítica
e mesmo assim não consigo parar. Quero ver se tem visitas, comentários, ler os blogs de quem passa
por aqui, conferir as estatísticas. Ando escrevendo sem controle, já pensei em começar a fazer anotações nas
paredes de casa para evitar esquecer uma idéia ou outra. Nunca acho papel e caneta quando preciso. E não sei se
estou insana ou se este é mais um vício na minha vida. Uma diária completa no Pinel, por favor!
Sempre foi assim, tenho propensão ao vicio. Foi assim com o “Red Alert” – fiquei um mês sem sair da frente do micro
construindo exércitos. Com o “Pinball Fantasies”, maridon acordou um dia de madrugada e eu tinha batido todos os
recordes; estava há oito horas no mesmo jogo e ainda faltavam três bolas para o “game over”. O vídeo-texto era um
serviço da Telesp que eu conheci antes de se ouvir falar em internet aqui no Brasil. Trabalhei um período para uma
empresa que vendia o sistema só para poder acessá-lo. Atari, minha irmã conta que, quando éramos crianças, ela
sentou na frente da TV para me ver jogar e viu o homenzinho do jogo pular na água e não morrer de tão rápido que
estava. Sou cheia de vícios. Aos dezesseis anos, viciei em bebidas alcoólicas doces, vivia enchendo a cara com
minhas amigas, até que um dia eu acordei, enchi uma tigela de sucrilhos e ao invés de leite coloquei amarula. Foi um
pouco demais, achei melhor parar de beber antes que me internassem no A.A.: açucarados anônimos.
Aliás, será que já existem clínicas que tratam dependentes de internet? Aposto que se não tem, terá. Para mim, falta
pouco para uma internação desse tipo.
Deve ser por isto que eu fico incentivando todo mundo a ter um blog. Vaidade é egoísmo, não quero ficar louca
sozinha. Se eu tiver que ser internada, que seja na mesma ala que meus amigos e muitos de vocês que, mesmo eu não
conhecendo pessoalmente, já fazem parte da minha leitura diária.



Escrito pela Alê Félix
23, dezembro, 2002
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/b>
Meu irmão acabou de colocar um mp3 no blog dele. Ele
está gravando um CD e os meninos aproveitaram para gravar pedaços dos ensaios que estão rolando. Vai lá! Depois me
diga o que achou, tá? O garoto canta bem! Puxou pra
irmã… A outra, não eu. :_(



Escrito pela Alê Félix
22, dezembro, 2002
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O maridon disse que é por causa do meu retorno de Saturno e que ele está chegando ao fim. Eu não sei como é o nome
disto que eu tenho sentido de um ano pra cá, mas espero que realmente acabe logo.
Não tive um ano fácil. Joguei dinheiro fora, não fiz nada de útil, passei por uma das maiores crises de mim comigo
mesma, não terminei nada que foi começado, não emagreci radicalmente (e nem sei se eu quero mais), estraguei meu
cabelo, continuo com medo de me desfazer da parte chata da empresa, não troquei a fiação da casa, não mudei de casa,
não pintei o banheiro, perdi um marceneiro bom e barato, não comprei a quitinete, não comprei a chácara, ainda acho
que eu sou uma inútil que não faz trabalho voluntário e que não colabora com porra nenhuma neste mundo, vi meus avós
muito menos do que eu queria, tive que apelar para psiquiatras, psicanalistas e comprimidos de felicidade porque eu
não estava conseguindo resolver meus problemas sozinha, continuo com as cólicas mensais que me disseram que
acabariam quando eu envelhecesse, meu nariz continua sangrando quando faz calor, continuo com medo de morrer e penso
o tempo todo em mandar minha vida para o espaço e viver de brisa em uma praia desconhecida pelas multidões.
Não me acho, não me satisfaço e me perco das coisas que eu quero. Aí eu começo a chorar sem saber os porquês. Não
sei os motivos, não sei mais o que eu quero e não sei para onde estou indo. Fico chorando de medo de fazer tudo
errado, de não fazer o melhor possível, choro de forte, de fraca e de boba que eu sou. E como se não bastasse,
agora, choro quando escrevo.
Um dia bom de dezembro
Ele sempre diz algo que me consola, sempre embasa a minha tristeza em alguma teoria prática. É bom tê-lo por
perto… Ele acalma a dor das horas que não passam.
Foi bom ter dinheiro para jogar fora, assim meu saldo aprende a não mandar na minha vida. E ainda bem que ele estava
na conta quando eu precisei pagar o analista, o médico e a farmácia.
Que bom que tive tempo para inutilidades e crises existenciais. Tem gente que passa a vida inteira sem poder se dar
este direito.
Devia ter cortado meu cabelo na pia, assim não teria pago pelo estrago.
Foda-se que eu não emagreci! Teria me tornado uma uva passa se tivesse feito isto bruscamente. Fica pra depois, com
calma, sem pressa e talvez.
Já que não reformei a casa, vou tratar de ficar mais tempo fora dela.
Continuo querendo um jardim de grama aparada, espreguiçadeira, flores e cactos. Mas será que este não é o tipo de
desejo que é melhor sonhar do que realizar? Vou continuar pensando sobre isto; decido quando a fase rica voltar.
Não quero ser doadora, quero ser contribuinte braçal. Dinheiro não vale nada, vale ir até lá, lavar prato, esfregar
o chão, contar histórias para as crianças. Mas farei isto de coração, com alegria e não pelo sofrimento que a
situação me causa. Não suporto a idéia de fazer caridade para compensar minhas tristezas ou as minhas dívidas
espirituais. Vou esperar, sem me acomodar, que chegue a hora certa para poder fazer a minha parte em paz. Será que
não há alguma entidade que quer de presente a parte chata da empresa?
O nariz ainda sangra sob o sol. Desde pequena ele sangra. Que bom! Sinal de que estou viva e com tempo para visitar
meus avós. E se as cólicas ainda existem, deve ser porque ainda não envelheci o suficiente para elas abandonarem o
meu corpo.
Praia vazia é para as férias, eu quero mesmo é viver na cidade, lotada, abarrotada e aberta 24 horas.
Me encontrar para que? Que viadagem esse negócio de precisar se encontrar! Acho que eu quero mais é ficar perdida
mesmo. Nada fácil dar de cara comigo mesma. Aí sim, eu teria motivos para chorar.
Tem sido tão descongestionante chorar em cima do teclado! Tenho lavado a alma com palavras. Meu choro me fortalece e
meus medos, que nunca me impediram de ir adiante, continuam nos seus devidos lugares. Minto: o medo de demonstrar
fragilidade se mandou de vez e parece que não volta mais.
Não foi fácil, mas quem disse que eu queria que fosse? Tem dias que sobram pensamentos medíocres, chovem motivos
para se lamentar, os dias parecem cinzas, arrastados e sem sessão da tarde com cobertor. Mas todos eles não passam
de lágrimas sobre a barriga cheia.
Em um mundo onde basta atravessar a rua para se indignar, ninguém com casa alugada, roupa passada, pele rosada e bem
amada tem o direito de reclamar do ano, muito menos da vida.



Escrito pela Alê Félix
22, dezembro, 2002
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“O problema das mulheres é acharem que os homens são tão complexos quanto elas. Homem não é. Subconsciente é coisa
de mulher. Homem não tem destas coisas, não.”
Rubens, o maridon



Escrito pela Alê Félix
21, dezembro, 2002
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