Pouco antes da meia-noite, chegamos em casa. Depois de correr a cidade em busca dos ingredientes da
prosperidade, eu estava exausta, com fome e pensando seriamente em voltar pra casa e passar o reveillon
dormindo. Pensei, mas não fui. O contato excessivo com o universo feminino misturado com aquele clima de vida
nova causaram danos rápidos na minha razão. Eu já estava quase convencida de que deveria aderir às mandingas
daquelas duas.
– Preciso de algo lilás. Nem que seja um lenço.
– Lilás? Lilás dá azar.
– Quem disse?
– Eu.
– Desde quando?
– Desde a minha terceira desgraça. O maior fora que eu levei na vida foi em um dia que eu estava com uma blusa
lilás. Lembra aquele dia do Aqui Agora? Sutiã lilás. No dia que o bar faliu? Calcinha lilás.
– Quanta lingerie lilás…
– Era um conjunto, mas foram usados separados.
– Cheguei! Está tudo aqui: folhas de louro para colocar na carteira, notas de um real para colocar no sapato…
e tenho um problema. Tudo bem eu tomar banho aqui? Minha chave quebrou no portão e agora preciso de um chaveiro
para entrar em casa.
– Claro! Mas corre porque falta pouco pra meia-noite.
– Obrigada, Lu! Você tem mel?
– Tem em um pote ao lado do xampu.
– Mel?
– Sim, mel! Para adoçar os relacionamentos amorosos, dona Alê.
– É, mas eu uso sempre… Só pra reforçar a simpatia.
– Vocês estão de brincadeira.
– Você não usa mais lilás! Está surpresa com o quê?
– É diferente…
– Vou tomar banho com a porta aberta. Assim participo da conversa.
– Ainda bem, assim posso fazer xixi.
– E eu arrumar este cabelo…
– Como é que você consegue arrumar o cabelo e beber ao mesmo tempo?
– Pronto incomodada! Agora minha taça de vinho não te perturba mais.
– Valeu. Assim eu tomo também.
– Sabia que era golpe.
– Bom, hein…
– Bom e caro. Por isso não tome, saboreie…
– Vinho e xixi, a combinação perfeita.
– Nem pense em fazer coco!
– Já disse que é xixi!
– Não esqueçam de pôr a nota de um real dentro do sapato. Ouvi dizer que esta simpatia é das quentes.
– Eu não vou colocar.
– Por quê?
– Estou de chinelo! Colocar dinheiro no chinelo é o mesmo que começar o ano perdendo dinheiro.
– Alê, não estraga. Mete um tênis neste pé e não bagunça o coreto.
– Não quero. Quero passar de chinelo.
– Isso! Não só o reveillon, mas janeiro, fevereiro… o ano todo de chinelo e pobre.
– Ah, as calcinhas amarelas e as roupas de cama estão nesta sacola em cima do cesto. Dêem uma olhada pra ver se
vocês gostam.
– Essa calcinha é minúscula! Eu não caibo aqui.
– Foi a única que eu achei na loja da Cris. Dá um jeito!
– Dar um jeito? Só se eu conseguir um cirurgião plástico que me faça uma lipoescultura em cinco minutos.
– Encolhe a bunda que cabe.
– Você acha o quê? Que a minha bunda é feita de linho?
– Boa idéia! Eu tenho uma minissaia de linho vermelha. Quase esqueci da peça vermelha. Acho que vou colocar ela
e uma camisa branca. Vocês não vão usar nada vermelho?
– Meus brincos. Roubei da minha irmã.
– Bonito, mas tire esta cabeça daqui antes que você molhe a gente.
– Tem que ser vermelho, vermelho? Não serve meu chinelo?
– Teu chinelo é laranja, Alê!
– E o laranja é o quê? Amarelo com vermelho.
– Você que sabe. Não quer paixão no próximo ano? Tudo bem. Problema seu.
– Sem paixão não parece bom… Deixa eu ver…
– Ah! Meu vinho! Vai derramar! Ficou louca?
– Pronto. Agora, além do vermelho do meu laranja, eu tenho uma mancha vermelha na calça. Acho que é o
suficiente. Mais do que isso pode parecer uma tentativa extra conjugal.
– Sabe quanto custou esse vinho?
– Não se preocupe. Seu saldo bancário está garantido pela simpatia do dinheiro no sapato.
– Alê, coloca uma roupa branca. Assim não tem perigo dessa mancha vermelha manchar a sua reputação.
– E o que o branco pode aliviar o vermelho?
– Simples, o vermelho representa a paixão e o branco a paz. É o equilíbrio que um casamento precisa.
– Isso é impossível.
– O quê?
– Paz e paixão no mesmo lugar. Impossível. Quando a paixão entra pela porta a paz sai pela janela. E
vice-versa.
– Alê, não é assim! O ditado da janela é outro… tem um lance de janela, amor e dinheiro. Não tem nada de paz
e paixão, não.
– Eu sei Milóca! Mas o ditado do amor e do dinheiro é furado. O meu, da paz e da paixão, é melhor.
– Eu não concordo com você.
– Pois deveria. É simples! Se você está apaixonada não pode viver em paz e se você está em paz é porque não
esta apaixonada. E se você acha que está apaixonada e em paz é porque a paixão já virou amor. Paz e amor é
possível. Paz e paixão, não. São incompatíveis. Viram como eu tenho razão?
– …
– …
– Não vejo a hora de vocês duas casarem.
– Nós duas porque? Eu já fui casada! Esqueceu?
– Melhor você se trocar rápido ou vai passar o ano novo de toalha.
– Menos de um ano não conta. Você terminou antes de sofrer. Isso é experimentar e jogar fora. Casamento pra
valer tem que ser como gostar de jiló. Você sabe que é amargo, mas não deixa de comer. Você cuspiu o jiló. Não
valeu, minha linda!
– Cuspi mesmo! Não quero um casamento jiló, quero um casamento brigadeiro.
– Então aproveita e pede pra Alê te apresentar o Evaristo.
– Evaristo?
– É, Alê. Aquele marrom bombom, gordinho e cheio de espinha que mora perto do apartamento da praia. Lembra? Um
brigadeiro! A Milóca vai amar.
– Passo… Nunca ouvi tanta merda!
– Sua memória é que nunca foi das melhores…
– Que seja. Mas acho bom que saibam da minha nova resolução de ano novo. Não quero saber de homens tão cedo.
– O que é isso? Uma confissão dos seus planos homossexuais para o próximo ano?
– Não. Esta é uma confissão celibatária.
– Lu, quer apostar?
– Ela agüenta dois meses.
– Cinqüenta reais que não dura trinta dias.
– Fechado.
– Vocês adoram perder dinheiro… é incrível.
– Não azara. Eu não jogo, faço cálculos baseados em fatos reais. Não tenho como perder.
– Mudando de sorte para estratégia, não é má idéia fazer planos para o ano novo. O que vocês acham?
– Eu acho ótimo! E, como eu estou cansada de fazer tudo certinho, acho que daqui pra frente vou fazer tudo ao
contrário. Vou operar o estômago, começar a usar drogas e soltar a franga de vez.
– Gostei disso. Tirando a parte das drogas e do estômago…
– Então você não gostou de nada porque a sua franga nasceu solta.
– Graças a Deus, querida! E que Deus conserve!
– Não é por nada não, mas a macumbaria já acabou? Podemos descer para comer?
– O nome disso é simpatia, Alê…
– Farinha do mesmo saco. Lixo do mesmo saco!
– Ignora. Alê sempre foi uma mulher de pouca fé. Ignora.
– Bom, falta pouco pra meia-noite. Melhor a gente correr. A champanhe está na geladeira?
– Está.
– Tem que guardar a rolha em uma toalha branca durante a primeira semana do ano.
– Ah, pára de inventar! Está na cara que isso é obra de algum desocupado que inventou essa moda só pra
sacanear. Nunca ouvi falar de guardar a rolha!
– E desde quando você ouve?
– Desde hoje cedo quando vocês duas afetaram os meus tímpanos com a merda da campainha e…
– Um minuto! Um minuto! Falta só um minuto para o ano novo! Onde está o mantra?
– Mantra?
– É. E não implica! Repete com a gente:
Fui puxada para repetir as palavras que algum apresentador de programa vespertino mandou. Atravessamos o ano de
mãos dadas, enquanto a Lucimara lia o mantra em voz alta para nós, para a mãe, a irmã e para uma tia dela que
estava no telefone.
Quando tudo parecia chegar ao fim, do nada, a mulherada começou a chorar. Eu não entendi porque, mas como eu não
agüento ver gente chorando, comecei a chorar também. Ficamos lá abraçadas, chorando e dando pulinhos de feliz
ano novo. Cinco mulheres e mais uma do outro lado da linha telefônica. Um homem presente se sentiria um extra
terrestre. Dona Alzira, a matriarca da casa, interrompeu o ritual nos chamando para a ceia.
Na mesa, as superstições continuavam presentes: farofa, arroz, lentilha, uvas, bolinhos de arroz, romãs,
champanhe e…
– Peru e frango? Vocês passaram o dia preparando simpatias para a virada do ano e fazem peru e frango? Peru e
frango ciscam para trás!
Elas me olharam como se eu tivesse dito o maior dos absurdos e responderam unânimes…
– Ah, isso é bobagem.
Pronto! Agora eu tenho MSN e ICQ. E aguardem! Eu tenho novidades. 😉
MSN = alefelixf@hotmail.com
ICQ = 311320340
Sou uma besta quadrada por não ter comemorado meu aniversário de trinta anos. Deveria ter feito uma festa de
criança. Como a que eu e minha irmã fizemos hoje para o meu sobrinho. Festa com piscina de bolinha improvisada,
línguas de sogra, apitos, playstation, twister e guerra de brigadeiro. Este ano eu comemoro os trinta e um.
Juro! Eu sinto falta de festas. Principalmente das que fazemos aqui em casa. Mesmo sendo um trabalho absurdo
preparar uma festa infantil e mesmo a casa virando um retrato pós guerra no final, vale a pena. Eu estou
arrebentada, mas fazia tempo que não me divertia tanto.
Como foi de última hora, vieram poucos amigos, alguns filhotes e um pedaço pequeno da família. Só agora tive uma
folga pra ver os presentes. Entre eles, uma garrafa de vinho branco trazida por um amigo solteiro que,
aparentemente, não freqüenta aniversários de bebês há muitos anos.
A tia agradece… 😉
Oito horas da manhã, eu sozinha naquele fim de mundo da casa dos meus pais e, mesmo assim, algum excomungado
insistia em me acordar com o barulho da campainha. Pra piorar, garoa. Muita garoa e muito cinza claro no céu. A
pior garoa paulistana é a da virada do ano. Não bastasse mofar na cidade vazia, ainda precisamos agüentar esse
chove-não-molha que acontece em quase todos os reveillons. Eu não achava o chinelo de jeito nenhum. E,
como o imbecil estava prestes a tocar a nona sinfonia apertando a maldita campainha, atravessei o quintal
molhado descalça e do jeito que eu acordei.
Segui preparada para amaldiçoar o infeliz, quando abro o portão e me deparo com duas alegres balzaquianas:
– Feliz ano novo! Feliz ano novo! Viemos buscá-la. Vamos fazer compras.
Eram minhas amigas… As únicas que sobreviveram às transformações da minha adolescência, meu mau humor e à
minha ausência.
– Vocês sabem que horas são?
Amarrei a cara e apertei o passo para fugir dos pingos. Satisfeitas com a sacanagem matutina, elas me seguiram.
Nossa velha amizade sempre consistiu em tentarmos atingir, um dia, a inimizade. Só pode ser este o motivo de
sermos tão cretinas umas com as outras. Eu ralhando do horário, do tempo e…
– Puta-que-o-pariu! Pisei na merda.
Dez anos sem cachorro em casa e sem a preocupação de olhar por onde eu piso. Eu havia esquecido completamente da
existência da Sasha. Sasha é a rottweiler que o meu pai comprou para substituir a dobermann que cresceu comigo.
A dobermann, antes de sua morte trágica, jamais cagaria cocozinhos tão imperceptíveis aos olhos humanos. A Sasha
é uma tragédia. Ela deve achar que, só porque aprendeu a rolar sob o comando do meu pai, pode defecar toneladas
de trocinhos pelo quintal. E eu com os dedos dos pés desnudos…
– Caralho, caralho, caralho!
As duas, cagando de rir…
– Alê, relaxa! Pisar na merda é como ter a casa invadida por um rato. Parece nojento, mas é sinal de bons
presságios. Ainda mais em plena virada do ano, isso deve ser um bom sinal.
– Bom sinal porque os vãos são meus e não seus! Puta-que-o-pariu… Onde está a mangueira, o listerine, o pinho
sol?
– Você não é iniciante nesse negócio de pisar na merda. É uma veterana, relaxa. Se não me falha a memória, uma
de suas pisadas fez o Rubens se apaixonar por você.
– É veterana em dar moradia para ratos também. Lembra da ratazana que invadiu o apartamento da M’Boi e ela ficou
com dó de usar uma ratoeira?
E riam…
– Por que vocês não vão a merda?
– Porque você pisou nela antes da gente!
E, às minhas custas, as duas patetas se divertiam cada vez mais. Eu querendo paz e ganhei a companhia ilimitada
daquelas três mulheres da minha antiga vida de solteira. Era o que me faltava para fechar o ano…
– Vai, Alê! Vai lavar as partes, porque já estamos atrasadas.
– Atrasadas? Eu não vou a lugar algum.
– Vamos sim! Temos uma lista enorme de mandingas para preparar até a meia-noite. Já calculamos a sua numerologia
e fizemos umas anotações pra você.
– Oi! Tem alguém aí nessa cabecinha loira? Sou eu! A sua chata e velha amiga descrente. Eu não acredito nessas
porcarias! Esqueceram?
– Querida, finge que eu sou surda e conversa aqui com a minha mão!
– Vocês andam lendo aquela merda de blog suas vigaristas?
– E não esquece de escovar os dentes. Sua boca está mais suja do que o seu pé direito.
Inconformada, molhada e premiada, eu olhei para o céu em busca de compreensão…
– Por que eu não fui para a Praia Grande dividir colchonete com meus irmãos? Por quê?
Duas horas depois de muita viadagem, desinfetantes, papo calcinha e horas no banho esperando que elas
desistissem de mim, lá fomos nós atrás de louro, arruda, sal grosso, roupas íntimas, lençóis, coisas vermelhas e
uma infinita lista de ingredientes que alimentam o bozó anual das passagens de ano.
—————-Continua…
Eu não sei se a minha boa memória é uma qualidade ou um problema, mas se não fosse por ela, meu olhar para a
vida seria tão míope quanto os meus olhos.
Há dez anos eu saí da casa onde eu cresci com a promessa de que nunca mais voltaria. Eu e minhas juras eternas.
Me faça chorar e eu disparo meia dúzias de “para sempre”.
Desta vez eu não chorei. Tive vontade, estou com vontade, mas este é um choro que não se chora. Carrego uma
mágoa filha da puta no peito, mas eu sinto que ela virou um assunto de menino. Se meninos não choram, meninas
fortes também não deveriam. E foi assim que eu cresci… ou tentei. Não consegui engolir metade das minhas
lágrimas, mas algumas não sairão nunca mais de dentro de mim.
Não estou triste, estou reflexiva. E, dessa vez, não sinto mais o medo que me torturava. Se eu pudesse voltar no
tempo teria sido menos arrogante, só isso… Como se fosse pouco.
Com poucas roupas na mochila, eu prometi para minha mãe que eu passaria o carnaval pensando. Dez anos depois,
estou de volta com a intenção de passar o reveillon pensando. Eu deveria pensar menos, ferir menos e
explicar melhor.
Minhas amigas, meu bairro, as pessoas que nunca me apresentaram, mas que me comprimentam quando eu passo… Aqui
tudo cheira a passado e parece que a vida deu um jeito de me fazer fechar um ciclo onde tudo começou. Eu nem sei
se quero este ponto final, mas acabou. Daqui pra frente, o que tiver que ser terá que vir com um primeiro
parágrafo.
Encontrei roupas antigas no guarda-roupa. Não entendo porque minha mãe as mantém aqui. Nem em pensamento eu
entraria neste macacão. Talvez, seja o mesmo que guardar uma foto na carteira. Esses detalhes devem ser as
sobras que aliviam as dores e alimentam as nossas ilusões… Meus poucos discos ruins de vinil. Que horror,
todos guardados. Pra quê? Nem temos mais toca discos. Encontrei vestígios da minha história no cheiro dos
armários, na textura dos lençois da cama, no silêncio da casa vazia e nas caixas com tranqueiras do depósito.
Apesar das reformas, ainda acordo de madrugada e ando por essa casa sem precisar acender as luzes.
Aqui não me sinto mais em casa, mas eu sei que ela ainda é minha. Talvez aqui eu sobreviva, mas eu só vim para
pensar…
Por tudo que passou, vou ali fazer um brinde aos próximos dez anos das nossas vidas e já volto.
– Engraçadinha… Claro que está é a tia Zéfa! Eu vi o número do quarto, vi o nome…
– Esta não é a tia Zéfa! Qual foi a última vez que você viu a tia?
– Faz tempo… acho que no casamento da tia Linda, mas…
– Há vinte anos, Shirley!
– Não acredito! Você está falando sério, Ale?
– Não! O que você acha, nó cega?
– Oh, dona! Porque a senhora não me disse que não era a minha tia? Qual o nome da senhora?
– Anh?
A dona era meio surda. Minha irmã insistiu:
– Seu nome! Qual o seu nome?
– Josefa da Silva Pereira.
– Caramba, peguei a mulher errada! E agora?
Maridon sem acreditar no ocorrido…
– Melhor devolver essa mulher antes que chamem a polícia e façam o retrato falado da sua irmã.
Entramos no carro e voamos para o hospital. Voamos é modo de dizer. O trânsito de São Paulo não flui, nem nos
feriados. A avenida Rebouças parada e nós quatro mudos. Minha irmã muda de preocupação, maridon mudo por
incredulidade, eu porque estava segurando o riso e a dona porque devia estar apreciando a paisagem. A tortura da
espera quebrou o silêncio do maridon:
– Mas como é que deixaram você sair com a mulher errada? Que hospital é esse?
– Eu furei o bloqueio.
– O quê?
– Ah! Fila, hospital, uma espera danada pra liberar pacientes… Acabei dando um jeito de sair de lá rápido e
acho que eles não perceberam.
– Você não preencheu papel nenhum? Deixaram você sair sem mais nem menos de lá?
– Mais ou menos…
– Assinou ou não?
– Não.
– Falando sério. Acho melhor ligarmos para o hospital e avisarmos o que aconteceu.
– Shirley, o Rubens tem razão. Liga pra mamãe e avisa.
– Não! Ficou louca? Ela me mata. Liga você!
– Eu não! Você que fez a merda. Liga você.
O celular tocou, era minha mãe. Depois de um empurra-empurra, a Shirley atendeu:
– Mãezinha, querida! Anh? Já ligaram é? Mãe, eu sei… Escuta… Como é que eu podia imaginar? Que culpa eu
tenho? Essa daqui parece a tia! Ok, não parece, mas tem o mesmo nome. Eu juro! Pergunta para a Alessandra se o
nome dela também não é Josefa!
Ela jogou a batata quente na minha mão…
– Mãe, é Josefa sim! Josefa Pereira da Silva… Eu sei. Estamos quase chegando… A Rebouças está parada, mãe!
E você vem brigar comigo? Eu não tenho nada a ver com isso… Vão prender a Shirley, eu não… Que cúmplice,
mãe! Custa, você ligar lá e avisar que foi um engano? Diz que no máximo em meia hora a gente devolve a mulher…
Estou levando só a maionese… Rubens, minha mãe quer saber se tudo bem você se vestir de Papai Noel.
– Vocês são loucas? Vocês pegam a mulher errada no hospital e querem discutir agora quem vai usar a fantasia do
Natal?
– Ele disse que não.
– Não disse nada!
– Sim ou não?
– Mas hoje? Papai Noel não é na véspera?
– Eu sei, mas a roupa estava alugada ontem e hoje de manhã…
– Cara, essa roupa de Papai Noel deve estar um futum da desgraça. Imagine quantos gordões já entraram nela de
ontem pra cá? Duvido que eles entregam lavada.
– A Shirley tem razão…
– Mãe, a Shirley disse que essa roupa deve estar fedendo…
– Ale, não piora a situação. Diz pra ela que eu ponho. Se eu der sorte, passo o resto do dia na prisão e está
tudo resolvido.
– Não, mãe! Não é nada disso. Você ouviu errado. Ele disse que vestirá com muita emoção. Está certo… Já
entendi… E liga para o hospital… Não me deixem esquecer. A mamãe está dizendo pra gente comprar algodão e
cola pra fazer uma barba no Rubens.
– Cacete, aí já é demais!
– Mãe, tchau! Ele disse que tudo bem. Beijo.
Chegamos no hospital e havia um rebuliço na recepção. Avistei a nossa tia Zéfa no meio da confusão dando um
esbregue nos atendentes dizendo que na família dela só tinha gente decente. Fiquei me perguntando o que ela
acharia se soubesse do dia que eu e duas amigas seqüestramos um…
– Chegamos! Chegamos! Desculpem a confusão. Foi culpa minha.
Minha irmã empurrava a cadeira de rodas com a dona Josefa e se explicava para um dos responsáveis pelo hospital.
Perdemos mais de uma hora entre esclarecimentos, preenchimento de formulários e dedicação aos curiosos que se
aproximavam para bisbilhotar. A nossa tia Zéfa e a dona Josefa já se conheciam de vista e ficaram jogando
conversa fora enquanto a situação se resolvia. E, quando tudo parecia terminado, a tia Zéfa veio com a novidade:
– Shirley, pede uma guia de saída temporária pra dona Josefa. Ela vai almoçar com a gente na casa de vocês. A
noite você traz ela de volta.
Olhamos um pra cara do outro e maridon…
– Tchau porque as tias são de vocês. Eu vou procurar um lugar pra comprar cola.
——————————–O começo dessa história está em um post aí embaixo.
Eu sei que eu preciso terminar de atualizar o escambo, escrever a saga do primeiro beijo, o
próximo post da tia Zéfa, o videotexto e tudo mais, mas hoje
será impossível.
Nunca misturem caipirinhas, feijão de corda, o sol da represa de Guarapiranga e Matrix Revolutions. É pior do
que misturar amarula com sucrilhos.
E, já que eu me sinto meio embriagada, vou dizer antes que eu esqueça: eu amo vocês. Amo pra caramba! Amo
muito… Amo todos vocês! Amo de chorar. Só não vou chorar agora porque já chorei na batalha do hangar… gente
lutando me emociona. Chorei até na merda da guerra do Star Gate. Se eu pudesse escolher um jeito de morrer,
escolheria morrer guerreando. Não que eu goste de guerras, mas gosto muito menos de morrer à toa. Acho que
ninguém, além do Bush e da indústria bélica, gosta de guerra. Mas sobre o que eu estava falando mesmo? Ah, eu
amo vocês… amo cada um dos mil e poucos seres humanos por trás dos cliques diários que este trem recebe. Amo
o carinho dos que encontraram algum motivo para voltar e amo a falta de inteligência dos anônimos irritadinhos
que me odeiam sem saber o que significa número IP. Amo por mais cafona e fora de moda que o amor lhe pareça.
E obrigada pelos montes de e-mails e comentários legais pra cacete que foram enviados nos últimos dias. Feliz
Natal, Ano Novo, feliz dia da Árvore, feliz próxima hora e feliz vida pra vocês também. Vocês merecem um grande
beijo na boca! Não um beijo meu porque eu sou hetero, casada, fiel, monogâmica e todas essas caretices
possíveis, mas de alguém que vocês amem tanto quanto eu ando amando. E rezem para que amanhã eu acorde sóbria o
suficiente para morrer de vergonha e deletar esse post. Fui.
Eu tenho uma família unida. Ou, pelo menos, parte dela. Dessas que se mobilizam para encher a laje, fazer a
mudança, emprestar dinheiro e socorrer a tia desamparada.
Se tivessem pedido pra mim, eu iria pegá-la no hospital, mas só porque tenho medo de ficar como ela. Ela é a
parenta que os meus pais usaram como referência para tentarem me convencer a fazer o que eles queriam.
“- Não vai ter filhos? Vai morrer sozinha como a tia Zéfa. Rica, viúva, avarenta e sem ninguém pra te visitar no
hospital.”
Ouvi isso tantas vezes, que já acostumei com a idéia de ficar rica. Antes eu ficava triste, mas hoje em dia,
prefiro que me apontem como a sucessora da tia Zéfa do que como a seguidora dos passos da tia Linda, do tio
Maciel ou do tio Ezio que se tornou a maldição do meu irmão Henrique. Aquele sim é uma ziquizira no destino de
alguém.
Tia Zéfa, além de tudo, é uma mulher de sorte. Depois de passar dias afetada da diabetes, o hospital lhe deu
alta bem no dia de Natal. Melhor dia para um enfermo conseguir um motorista. Bastou um pedido da minha mãe para
que o espírito natalino tocasse o coração da minha irmã e ela se prontificasse a atender aos apelos da tia que
ela mal conheceu.
Na verdade, tudo aconteceu por culpa da minha mãe. Qualquer desgraça que aconteça nos nossos diversos graus de
parentesco, ela sempre é a primeira a ser convocada para resolver o problema. E ela fez isto tão bem enquanto eu
e meus irmãos crescíamos, que nós aprendemos todas as lições necessárias para atender à demanda com rapidez e
eficiência. Normalmente, mais eficiência do que rapidez, mas como era dia de Natal, minha irmã queria tudo,
menos perder tempo.
Ela chegou na recepção munida de todas as suas técnicas de engenharia social. Sorriu para a enfermeira, flertou
com o tio da limpeza e distribuiu balas para os plantonistas. Em menos de dez minutos ela já tinha furado o
bloqueio burocrático, pego uma cadeira de rodas e entrado no quarto da tia Zéfa.
– Oi, tia! Lembra de mim?
– Oi…
– Eu vim buscar a senhora…
– Ah, é…
– Eu sou a Shirley, filha da Maria, neta do Jose, bisneta do João, prima de segundo grau da Ana, sobrinha neta
da senhora. Lembrou?
– Ah, sim…
– Como a senhora está se sentindo? Está melhor?
– É… estou mais ou menos.
– E as coisas da senhora? Já estão prontas? Apoie-se em mim que eu ajudo a levantar.
– É? Está bem, então.
– Ainda não arrumou as roupas tia? Aí meu Deus, tia! Não, não, não! Pode deixar que eu arrumo.
Em menos de meia hora tudo resolvido. As duas, cheias de sorrisos e acenos, atravessaram o hospital sem muitos
aborrecimentos. Os poucos corações enfurecidos por trabalharem no feriado já haviam sido conquistados com as
lições de simpatia que mamãe ensinou.
Missão cumprida, ela colocou a tia no carro, meteu-lhe o cinto de segurança, ligou o rádio e, ainda movida pela
graça da boa ação, me ligou do celular e ofereceu carona para o almoço na casa dos nossos pais.
Tocou minha campainha, quinze minutos depois…
– Não vou entrar. A tia Zéfa está no carro e ela tem dificuldade pra andar. Espero você aqui.
– Ok, eu desço em um minuto.
Peguei a chave, a bolsa, os presentes e a maionese. Maridon desligou o micro, fechou as janelas, acendeu as
luzes pra despistar ladrões de fim de ano, ligou os pisca-piscas do cabideiro de Natal pra reforçar a segurança
e trancou a porta. O carro parado em frente ao portão com a minha irmã de pé, já esperando com o banco
levantado.
– Ois, ois! Entrem por aqui porque a tia Zéfa é ruim de levantar.
– Oi ti… Quem é a senhora? Shirley! Essa não é a tia Zéfa! Ficou louca?
——————Continua em só mais um post. Juro. É que ficou muito grande pra ser um só. Ho-ho-ho!