Estacionei o carro achando que a igreja estaria tomada por devotos mas, curiosamente, eu era a única alma viva por ali. Desliguei o carro e travei as portas. Olhei ao meu redor, já achando que eu estava no meio de uma cidade deserta, quando um som de coral desceu da basílica e invadiu meu peito apontando uma direção. Procurei uma saída dentro da imensidão do estacionamento e atravessei – sem nenhuma companhia – uma passarela que levaria até o meu castelo infantil, disfarçado de igreja. Lá, do alto da basílica, a vista da cidade e do céu de Aparecida cobriram meus olhos com uma paisagem que eu não esperava. Tive vontade de assistir a missa, mas nem quis entrar. Sentei nos degraus da porta lateral e encostei em uma coluna que me deixava com os olhos voltados para a vista e os ouvidos atentos as palavras que escapavam de dentro da igreja. Dali, ouvi o padre contar que gosto de tangerina o fazia lembrar de sua infância em algum lugar da Itália, do Natal e de sua família. Ele falava da importância da união e dizia que a presença de Deus estaria nas nossas mesas naquela noite. Achei bonito, concordei com ele sobre a importância da união, mas não conseguia parar de olhar para o céu de nuvens gigantes, ameaçando tempestade e uma cidade inteirinha embaixo dele, silenciosa e vestida de sua construção calcada na fé.

Era um lugar interessante feito o Vaticano que coincidentemente eu havia conhecido meses atrás, também interessada em algum contato com Deus, mas preferia esquecer. Lá, eu nem sequer entrei na basílica de São Pedro, mal desci do ônibus de turistas que circulava entre as principais atrações italianas. Lá, eu estava tão de saco cheio do oportunismo dos italianos e toda a ilusão que o meu cérebro classe-média havia criado sobre a Itália que peguei os trinta minutos de espera na parada do ônibus, entrei em um restaurante para tomar um sorvete, pedi duas bolas e sai sem pagar.

Acho que naquele momento, Deus classificou minha atitude como um grande pecado porque logo depois eu entrei numa depressão desgraçada. Foram cinco dias zanzando pelas ruas de Roma e chorando por todas as separações da minha vida. Enquanto via brotar do chão casais em lua de mel, chorei até pelo primeiro menino que gostei na pré-escola. Cinco dias comendo pior do que eu comeria se tivesse estragado minha própria macarronada e usando a boca somente para resmungar indignada, pedir a conta e vaiar (!) Roma. Mas… tudo bem. Roma e o roubo do sorvete no Vaticano não haviam sido experiências muito boas, mas era passado. No presente, as vozes cantavam pedidos de perdão, eu estava no pé da segunda maior casa de oração católica e ela me parecia um bom lugar para aprender a rezar direito e pedir desculpas pelo que afanei na primeira.

Hum… Como é que era mesmo? Bom, vamos lá… Pai nosso que estais no céu… Santificado seja… Putz! Puta raio foda!

Tapei a boca com as mãos com medo de represália divina vinda no formato de mais um raio, possivelmente direcionado para a minha goela. Passado o susto, achei melhor deixar a reza de lado e pedir desculpa conversando, do jeito normal que eu fazia desde criança…

Oi, Deus… Beleza? Tudo bem aí no céu…? Tá feliz? Hum… Quanto tempo, né? Então… Eu sei que hoje deve ter um monte de gente te enchendo a paciência, mas você sabe que nunca fui de incomodar. Pra dizer a verdade, nem sei direito porque estou aqui… Acho até que vim só pra descobrir, sabe? Por enquanto, tá tudo bem, tô indo lá pro Rio de Janeiro ver a Alice e o Silvio. Aliás, valeu por ter cuidado da Alice esse ano… Valeu de verdade. Mas parei aqui só de curiosidade mesmo… Nem vim pedir nada… Não, eu não vou roubar nada… Mas olha… Aproveitando a lembrança, com relação aquele sorvete que eu roubei na gelateria da Itália, eu sei que só fiz isso só pra contar vantagem para os meus amigos, dizendo que roubei sorvete de cristo, que foi como tirar doce de criança, mas espero não ter ofendido ninguém. Você sabe que eu tava triste pra caramba e só fiz isso porque fui sacaneada por todos aqueles italianos desesperados por grana e odiadores de turistas… Ok, ok… Vou me corrigir… “Todos os italianos que encontrei”, o que não significa “todos os italianos do mundo” … Às vezes, eu acho que até você que deveria, não tem a manha de generalizar só pra falar sobre um determinado assunto, sabe? Bom, o que eu sei é que Roma pode ser linda do jeito que for, mas é igual um homem bonito que desperta paixões deixando claro que em algum momento haverá sofrimento. É propaganda enganosa! Toda a cidade e seus arredores… Tudo marketing! Tipo o Vaticano que acha que é país, mas pra mim não passa de um bairro shopping-center de Roma. Você pode até ser a favor do Vaticano, mas aquilo não é certo. Se bem que… Sei lá eu se você é a favor de verdade, né? Enfim… Não quero me meter nos seus gostos. Você sabe que eu espero honestamente que você torça para todos os times, até pra quem joga sozinho, mas quem sou eu pra dizer o que você deveria fazer? Da minha parte, só quero mesmo é que fique claro que não tenho nada contra nenhum deles. Tanto que roubei o sorvete, mas tô indo fazer o raio da peregrinação, que é uma coisa que acho bacana e é adotada por um monte de gente católica… Tá vendo? Olha só como eu sou legal… Ok, ok… O que eu quero te dizer é que se você ficou puto comigo naquele dia, não devia, porque eu não mereço. Paguei preço de hotel cinco estrelas pra dormir em uma espelunca, em cima de uma cantina porqueira que me fazia acordar as sete da manhã com o cheiro do corte das cebolas. Viajei achando que eu ia me acabar na berinjela à parmegiana e descubro que qualquer cantina chulé do bairro do Bixiga dá de dez a zero nos restaurantes dos mal educados que conheci! E todo aquele papo de que a Itália é o país do amor, que o povo sabe paquerar? Sério, o que a Itália chama de paquera eu chamo de assédio sexual! Roubar sorvete foi pouco! Se eu não fizesse nada pra dar o troco naquela tristeza toda que eles me fizeram sentir, teria entrado no Coliseu e avançado nas pessoas ou largado o diacho do gelato pra procurar o Papa e dar-lhe uma pedalad… Puff… Beijoca na mão feito pedido de benção. Tá feliz agora? Enfim, Deus… Na boa? Já que estamos aqui, além de me perdoar por essa história do sorvete, você bem que podia me dar algum sinal de que estou no caminho certo da vida, né? Eu sei que passei a infância te dando perdido nas promessas, mas achei que estávamos de bem! Até o ano passado, nossas conversas pareciam poesia! Você fazia aparecer beija-flor sempre que eu estava na dúvida… Lembra? Então… Parou porque? Eu achava legal aquele papo de sinal… Hum… Você também acha que foi culpa minha a separação com o Wil, né? Cara, você tem que ser muito babaca pra achar que… Ok, não vou discutir com você porque você tem trovão e eu só tenho reclamação. Ok! Ok! E muita gra-ti-dão pela saúde. Muuuita! Tá bom assim? Ótimo. Agora, dá pra parar de tacar na minha cara que você tá careca de ser bom pra mim e eu nunca te dei valor? Sério… Eu dei e dou valor! Mas nunca me senti tão perdida como estou me sentindo esse ano e você fica fingindo que não me conhece mais… Pô, eu tô até indo em igreja! Não, não fui só de turista não! Entrei naquelas da Itália porque eram bonitas, mas depois você sabe que fiquei tocada. Chorei por horas! E de joelhos, pedindo pra você me ouvir! Chorei lá, tô chorando aqui, vou passar a virada do ano seguindo os passos de um cara que foi legal pra burro com você… Blá, blá, blá… Não tô chorando agora, mas dá vontade! Eu sei, eu sei que nem me dei ao trabalho de me informar sobre quem foi o José de Anchieta. Sei de tudo isso! Olha, com todo respeito, você sabe que eu acho verdadeiramente bacana seguir algum caminho espiritual e se as religiões se prestam a oferecer esse caminho, acho super válido. Mas você também sabe que se eu estivesse realmente feliz, não estaria aqui. Aliás, você reparou que é véspera de Natal e a cidade está as moscas? Você não acha que tá vazio desse jeito só porque o país está um pouquinho mais rico e, com dinheiro no bolso, o povo te abandonou e se mandou pra praia? Putz! Meu, cê é louco? Você deve achar graça de assustar as pessoas com esse negócio de relâmpago, né? Sério, não tem graça nenhuma. Eiiii… Dá pra parar? Vamos lá! Qual é o plano? Me castigar porque eu roubei a porra do sorvete na gelateria do Vaticano? Pecado é o Vaticano vender sorvete com a cara do Papa desenhada na casquinha! Quer saber? Problema seu. Eu não tô mais nem aí! Quer me relampejar, fica a vontade. Só de pirraça, agora eu vou peregrinar só pra ficar gostosa! Adeus à tentativa de voltar a falar com você, adeus à toda minha máxima culpa pelos conflitos de todos os meus relacionamentos! Adeus, espiritualidade! Adeus, humanos, porque daqui pra frente nunca mais falo com nenhum de vocês também! E, principalmente, adeus, Deus! Você que se…

E desabou o céu…

Hahahahaaha! Uiii… Ele faz chover quando tá bravinho! Uiii… Mimimimi! Mas que puta chuva sem noção, hein? Por que eu não fui embora daqui antes? Tudo bem que você estava caprichando no palavrão, mas cuspir nos outros é muito feio, sabia!?

Pensei em entrar na igreja pra me proteger da chuva, mas fiquei com medo de colocar em risco a vida dos fiéis. Corri de volta para o estacionamento tentando me molhar o menos possível e dar uma banana pra Deus, mas uma criançada passou voando por mim, me fazendo dar risada de todo o monte de bobagem que eu havia dito…

– O último que chegar do outro lado da “Passarela da Fé” é a mulher do padre!

E perdi a corrida…

Se na Itália eu tinha sido zoada pelos adultos, em Aparecida foi a vez das crianças. Além de ter corrido feito uma pata de tamancos, ainda escorreguei e cai de bunda na tal da “Passarela da Fé”. Cheguei por último e pior… Eu ri! E levantei e segui descalça e continuei rindo da minha cara junto com a molecada no meio da chuva. No final das contas, dei tchau para os pivetes como se eu fosse do grupo, recusei com gratidão a mexerica que um deles me ofereceu e segui em direção ao carro.

Me senti um pouco em paz depois de ter brincado nas pontes do castelo… Mesmo depois de ter bancado o dragão, sabe? Fazia tempo que eu não brincava…



Postado por:Alê Félix
04/02/2012
1 Comentários
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Maria Angela

março 8th, 2012 às 1:39

Gostei muito. Deus sempre está contigo. Beijos.
Maria Angela


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