Em qualquer bairro da periferia de São Paulo, dois movimentos eram levados muito a sério nos anos oitenta: a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana em enterro de celebridade e a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana no programa do Silvio Santos.

Graças a Deus e o mínimo do bom senso, os passaportes para as caravanas dos enterros nunca interessaram nem a mim nem a ninguém da minha família, mas… alguns segredos do passado precisam ser desenterrados…

A escola onde eu estudava também fazia caravanas para os programas do SBT, mas eu jamais me atreveria a ir com colegas de classe em uma delas. De jeito nenhum! Qualquer adolescente que fizesse algum comentário sobre as atrações apresentadas pelo Silvio Santos, mesmo sabendo que TODO mundo assistia, era taxado de alienado ou mega pobre.

– Credo! Você assiste isso? Programa de pobre, hein? Cabecinha…

Uma coisa que só quem mora na periferia sabe – e pode parecer completamente bizarro pra quem é de fora – é que até dentro de favela, existe divisão pra ver quem é o menos pobre e quem é o mais pobre. Eu, particularmente, me considerava a nata da ala nobre, cool e intelectual do Jardim São Francisco e da escola estadual de primeiro e segundo grau que estudava no bairro do Socorro. Ou seja, nem morta, eu me enfiaria em uma daquelas caravanas ou diria que fiz outra coisa no domingo, que não fosse algo de matar minhas amigas de inveja e os meninos de admiração.

Eu me orgulhava por ter recusado passaporte até pro Domingo no Parque, embora – em segredo total e absoluto – eu fosse alucinada pra entrar naquele foguete, esperar a luz acender, dizer NÃOOOO “para os espelhinhos velhos que não valiam nada” e SIMMMMM para “todos os brinquedos do programa mais uma super-ultra bicicleta sem rodinhas”.

Até os quatorze anos de idade eu aguentei bem e disse não para todos os convites. Era tranquilo, até que minha melhor amiga terminou com o namorado, entrou na maior fossa e me encheu a paciência dizendo que queria porque queria ir na caravana pro Show de Calouros. Ela era apaixonadíssima pelo Sylvinho, um cantor na linha do Fiuk e que na época bombou em tudo que era rádio com a música “Meu Ursinho Blau-Blau”. Pois é… Era uma letra quase gay, de um cara pedindo pro seu ursinho fazer a namorada voltar pra ele. Eu passava horas com a minha amiga tentando convencê-la de que a letra era completamente anti-sexy na voz de um cara, mas ambas concordávamos de que era impossível resistir ao sorriso do Sylvinho.

– Lu, na boa, um cara que diz “AI… AI! Meu ursinho Blau-Blau de brinquedo… Vou contar pra você um segredo… Só você mesmo pra me aturar”, é menininha!
– Mas o que ele diz em seguida? O que? Hein? O que? “AHH… Esse meu coração tão vadio” Concorda comigo que “coração vadio” é másculo?
– Galinha sim, másculo não.
– Ok… Olha o resto “se amarrou nesse corpo macio, ela quer é me fazer pirar…”
– Pura poesia…
– O cara é lindo!
– Lindo… Não tô discutindo beleza física! Mas se é pra pagar mico cantando musiquinha, faz igual ao Wando!
– Ahhh, claro! Mil vezes melhor “Quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher.”.
– Isso não é Wando! É Agepe!
– Tudo igual! E tudo homem feio!
– Não tô discutindo beleza física!
– Tá bem… Se você acha o Wando legal…
– Só tô dando exemplo de letra que vale a pena cantar e pagar o mico.
– Você vai ou não vai no Show de Calouros comigo?
– Claro que não!
– E no Qual é a Música?
– Nunca!
– Parece que essa semana quem vai no Qual é Música é o Sylvinho…
– Nem morta!
– …
– Não.

Eu não sei direito como foi que essa conversa levou a outra e mais outra e uma aposta e quando vi eu tinha perdido e estava sendo guiada pelo Roque para sentar na primeira fileira do Show de Calouros, disputado entre Sylvinho e Naim.

Minha amiga eufórica e eu morta… De vergonha!

– Roque, por favor, desculpa… Mas eu prefiro sentar beeem lá no fundo.
– Nãããoooo, minha filha… De jeito nenhum! É ordem da casa. A gente tem que separar “as bonita” e colocar tudo sentadinha na primeira fileira.

Vaidade é uma merda… Ouvi isso, dei um sorrisinho pro Roque, sentei na primeira fileira junto com minha amiga gata e mais um monte de linda, me achando. Silvio Santos é um hipnotizador de pessoas… Se ele dissesse “agora todo mundo plantando bananeira”, aquilo teria virado uma aula de yoga numa fração de segundos. Até eu – que achava que pensava – minuto depois dele chamar o Sylvinho pra cantar, estava me prestando ao papelão de cantar e pular em frente das câmeras… Não gritei. Mas dei umas boas sacudidas.

Sabendo que estávamos no banco das mais lindas, era como se um espírito de miss debilóide invadisse nossos corpos. Nossas poses diante das câmeras variavam de meninas sérias, para sorridentes com miradas sexys. Era ridículo, mas tenho que admitir que foi divertidíssimo. Eu não lembrava mais de nada do que havia pensado até então, só curtia as músicas, as brincadeiras do Silvio e o momento. Se me dessem um papel pra assinar que eu era presidente do fã clube do Naim ou do Sylvinho, eu assinava na hora. Quando começaram os quadros que precisavam da participação da platéia, o segredo musical proposto pelo Silvio era a palavra “louca”. Ou seja… Tava pra mim! Era só eu correr até o microfone e cantar alguma música que na letra tivesse aquela palavra. Com a minha cabeleira morena e franja cortada no estilo da franja da Angélica, vestida na última moda com meu blazer listrado de branco e amarelo, dotada de toda a desenvoltura de quem não faz a menor ideia da merda que está prestes a fazer, soltei…

– Você é luuuz. É raio estrela e luaaar. Manhã de sol. Meu iaiá, meu ioiô. Você é sim… E nunca meu não. Quando tão LOUCAAAA. Me beija na boca. Me ama no chão…

E o seu Silvio Santos…

– Não sei que música é essa… Você só sabe essa parte? Canta mais um pouco pra eu ver…

O mundo inteiro sabia que música era aquela. Óbvio que era brincadeira dele, mas…

– Como assim não sabe, Silvio!? Ó… prestenção! Me suja de carmim…
Me põe na boca o mel… LOUCAAA de amor, me chama de céu ohohohoh… E quando sai de mim… Leva meu coração! Você é fogo… Eu sou paixão. Viu?
– Meu bem… Que eu sou fogo eu já sabia. Mas que você é a paixão eu só tô vendo agora! Rooooque! Paga pra ela Roque!

E eu lá… com meu sorriso de tonta achando o máximo e vibrando com a bolada que levei no momento seguinte, quando ouvi a chamada para que o Pablo cantasse qual era o segredo musical: Wando! Fogo e Paixão. Na cabeça! Voltei pro microfone pra receber meu prêmio…


– Qual é mesmo seu nome, meu bem?
– Alessandra…
– E de qual caravana você é?
– Do Jardim São Francisco…
– Uma salva de palmas pra caravana do Jardim São Francissssco!

E quem disse que eu fui embora quando acabou o programa? Quem quisesse ir, poderia ter ido, mas naquele dia eles gravariam mais três programas: outro “Qual é a Música”, um “Tudo por Dinheiro” e o “Roletrando”…

– E você ficou na fileira das mais bonitas em todos eles?

Me perguntou o WANDO – vinte anos depois – sentando ao meu lado, num voo do Rio de Janeiro pra São Paulo e que acabou virando café, a descoberta de alguns amigos em comum e uma porção de gargalhadas entre uma conexão e outra no aeroporto de Congonhas…

– Não só fiquei na fila das mais ajeitadas como ganhei uma bolada no Roletrando e outra grana boa na brincadeira das gavetas que saiam cobras do Tudo por Dinheiro.
– HAHAHAHA… Mentira…
– Sério! Comprei até uma bicicleta na época.
– E o senhor Silvio Santos te chamou três vezes seguidas para participar das atrações!?
– Pois é, Wando… Isso foi complicado… Por causa disso eu fui odiada no meu bairro por um tempo. Mas putz… Não foi por mal. Ele perguntava quem queria participar, eu levantava a mão e ele escolhia… Com quatorze anos, cê acha que eu ia pensar “não, eu já brinquei, vou pedir pra sair…”.
– Caiu nas graças do patrão!
– Foi divertido…
– Mas Alê… E aquela história de que você não ia nas caravanas para o SBT porque não queria a fama de alienada na escola? Todo mundo da escola deve ter visto quando o programa passou na televisão, não? Como é que você fez depois de ter aparecido em quatro programas seguidos?
– Ué… Não fiz. Disse que não era eu!
– Como não!? Caravana do Jardim São Francisco, Alessandra, blazer listrado de branco e amarelo… Quem mais?
– Wando… Você me perguntando isso? Você é um romântico… Um poeta! Você sobe no palco e canta! Como é que um cara que dedica a vida a cantar as e para as mulheres… Me pergunta uma coisa dessas? Você sabe melhor do que ninguém que é só negar até o fim, Wando! Muito mais fácil convencer um bando de adolescentes de alguma coisa do que convencer mulheres de algo que você queira.
– Ahh, não é mesmo! Se eu disser que não era eu na televisão, ninguém acredita.
– Se eu subir no palco e pedir pras malucas jogarem as calcinhas, também não, né!?
– HAHAHAHAA…
– Mas e o Naim, hein? Que fim levou?
– Nunca mais vi! E o Ovelha?



Escrito pela Alê Félix
8, fevereiro, 2012
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Acho que é por sentir o mesmo que o Ansel Adams que nunca me apaixonei por ninguém que não tivesse o mínimo de noção fotográfica. Eu sei que parece bobagem, mas se o rapaz escrevesse e fotografasse direitinho sempre dava um bom norte pro meu coração. Ele podia ser açougueiro, imperdoável seria se cortasse a cabeça de alguém nas fotos de família. Podia ser o moço mais lindo… Era só através do olhar e das palavras que não eram ditas da boca pra fora, que a alma do lindo se revelava pra mim.

É assim até hoje, embora eu mantenha o pé atrás diante de grandes artistas. Gosto dos amadores, dos descompromissados, dos que nunca precisaram transitar entre a iluminação e a humilhação de um processo de criação. Gosto dos que fazem arte por necessidade de arte! Aquele tipo de ser aparentemente comum que passa a semana toda disfarçado no meio da multidão engravatada e só precisa de um fim de tarde bonito para sair da toca, pensar, criar e dormir feliz. É desses moços que eu gosto… Moços que nunca tiveram que sarar de depressão por falta de criatividade, nem lidar com os mínimos detalhes que podem transformar o dom em desastre. É… nunca gostei dos profissionais. Morro de admiração, mas nunca desejei morrer de mãos dadas com um deles.

Ok… Estou mentindo. Já gostei… Mas foi um sofrimento. Éramos muito garotinhos, eu só sabia o nome dele de ouvir e achar diferente na hora da chamada. Na hora do recreio ele nunca se misturava e eu achava que fosse por pura timidez, não porque era a hora que ele podia fazer o que mais gostava. Xereta, fui até o canto que ele se enfiava pensando em resgatá-lo para o convívio social no parquinho da pré-escola. Cheguei perto, já ia me apresentar e convidá-lo pro gira-gira, mas espiei os desenhos antes de falar e me vi desenhada em vários rabiscos de giz de cera nas folhas de sulfite. E eram todos tão surpreendentes que o meu único impulso foi roubar uma das folhas, sair correndo e mostrar pra professora…


– Annnnnnnn! Que lindo!
– …
– Qual o seu nome mesmo!?
– … Kevin… Por que?
– Nada não… Já venho!
– Eeei, meu desenho! Me devolve!
– Professora! Professora! Olha isso! Olha que lindo que o Kevin fez! Olha, professora! Duvido que a senhora já tenha dado aula pra alguma criança que desenha bonito desse jeito! Olha! Olha, professora!

E ela não olhava… Estava ocupada corrigindo as provas da turma dos mais velhos…

Roxo de vergonha, ele veio até mim, pegou o desenho de volta, pediu que eu prometesse nunca mais fazer aquilo e se tornou meu melhor amiguinho de escola. Passei os dez anos seguintes não cumprindo a promessa, mas ele me perdoava… Dizia que era fácil enxergarmos talento em quem a gente ama e ignorava o fato de que tentei mostrar os desenhos dele para o “deus” do nosso pequeno mundo, antes mesmo de saber pronunciar seu nome.

Kevin era brilhante não só desenhando, mas com tudo o que tocava. Desenhava com o coração, escrevia pra pedir perdão, me fazia ouvir som de gaita como se fosse possível traduzir em palavras o que cada dedilhada dizia. E achava que não fazia nada de especial, mesmo quando era capaz de modelar suas piores más intenções em pedaços de Durepox, só para fazer alguém sorrir…

Acho que tanto falei, tanto admirei, tanto mostrei que um dia ele acordou e acreditou que tinha pelo menos um grande talento. Deixou pra lá os desenhos, as telas, entrou como quem não quer nada em um concurso de fotografia e o ganhou com uma foto que fez a faculdade inteira o aplaudir de pé. Naquele dia, ele parou de brincar e virou fotógrafo. Foi um sucesso tão absurdo que ele dizia que havia se descoberto talentoso como quem acha uma caixinha mágica e não quer mais parar de abri-la. Toda a alma exposta nos desenhos depois de horas de dedicação, ele buscava na fração dos segundos das fotografias… Toda a delicadeza que os traços lhe davam, o enrijeciam com química, êxtase e insatisfação com os resultados no laboratório fotográfico. E ele mudou… Parou de sorrir enquanto criava, passou a buscar perfeição e aceitação.

Com o passar dos anos era como se ele tivesse exercitado tanto a sensibilidade que passou a ignorá-la ou explorá-la. E eu olhava e via claramente que era vício… Que tudo que se faz em excesso para gozar ou comer, deixa lentamente de ser uma caixinha mágica pra se tornar qualquer coisa oca e confusa feito nossa própria cova. No final, olhar pra ele ou suas obras me dava sempre um sentimento de que um dia foi de verdade, um dia ele chorou, sorriu, pintou, fotografou e escreveu pela simples necessidade de transformar as emoções… Um dia, houve uma alma que era tão grande, tão grande que lhe escapou pelos olhos, mas podia ser sentida até sobre os poros. Um dia, alguém – assim como eu – gostou tanto, tanto do que viu que achou que o conhecesse há séculos e que suas fotos podiam atravessar os próximos…

– É isso! Finalmente o que eu sinto vai parar de bater somente dentro de mim!
– Nunca bateu somente dentro de você… O volume sempre foi alto demais. Ela teria que ser muito surda pra não ouvir…
– Mas agora todos vão ver quem eu sou!
– O que você é?
– Tudo o que eu sinto… Vejo…
– Você não é mais o que você sente… Você virou o que você quer, não o que sente.
– O que eu quero e sinto é o que faz de mim quem eu sou.
– É por você ou é pelo que você sente?
– Eu só quero que todos vejam! Pode parecer vaidade, mas não é uma coisa ruim. Você está falando como se fosse ruim querer ser reconhecido.
– Qual o preço que você vai ter que pagar pra seguir o caminho desse reconhecimento?
– Eu pagar!? Não! É a primeira vez que vou receber de verdade!
– Qual o preço que você vai ter que pagar?
– Você não entende…
– Qual o preço que terá que pagar?

– Não dá pra viver vendendo tela de pintura…
– Eu nunca disse pra você deixar de fotografar pra viver do que pinta…
– Com fotografia dá pra eu me manter…
– É pra manter você ou é pra manter o que você sente?
– Eu quero mais do que isso…
– E o que você quer?
– …
– É disso que você precisa?
– …
– Sabe o que eu sinto? Quando te vejo pintar é como se estivéssemos novamente no parque da escola… Você dizia que pelo meu sorriso dava pra saber o quanto eu gostava do que você fazia. Mas a verdade é que mesmo gostando de medir minha opinião através dos meus sorrisos, só um sorriso bastava para transformar tudo o que explodia dentro de você em arte… O seu! O sorriso de satisfação que você ainda dá quando começa e quando acaba uma tela. Aquele, quase de orgasmo, que te dá a sensação de missão cumprida depois de acertar todos os detalhes e ver diante de você todo o turbilhão de pensamentos que antes batiam somente no seu peito, transbordando no papel. Esse sorriso não precisa ser o único, mas deveria ser o único a determinar o que precisa ser feito. Se é essa a sua arte, só o seu sorriso importa, mesmo se ninguém quiser ver, mesmo se todos mostrarem a língua pra você.
– Eu não quero ver sozinho…
– Fotografar nunca te fez feliz…
– Mas faz as pessoas pensarem…
– Te faz bem? Te traz qualquer tipo de realização, além de ser reconhecido?
– …
– Todo artista sempre será o primeiro espectador de sua obra… Se você não se tornar fã ou nem sequer sentir algum tipo de bem estar pelo que fez, vai adiantar ser aplaudido por outras pessoas?
– Desculpa… Eu preciso trabalhar…
– Ok.

E lhe pagaram o almoço, a janta, roupas novas, carros possantes, um lindo apartamento no topo do mundo, uma passagem aérea que o levou para bem longe dos sonhos de garoto sonhados no parquinho da pré-escola… E eram tantas pessoas e tantos lugares e tantas perguntas com respostas reticentes, tanta distração o distanciando do que realmente importava que – mesmo sem ter deixado nenhum bilhete – tenho certeza absoluta de que foi assim que ele perdeu de vista a própria alma.

Também foi assim que eu o vi partir… Sem nunca ter sido um simples e grande pintor que sorria diante de suas telas, ou o cara comum que saia para fotografar o pôr do sol com os amigos, mas depois de ter se tornado um grande fotógrafo e se jogado do décimo segundo andar de um prédio de luxo, sem nenhum porta-retrato na estante, mas repleto de obras de arte nas paredes.



Escrito pela Alê Félix
7, fevereiro, 2012
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Estacionei o carro achando que a igreja estaria tomada por devotos mas, curiosamente, eu era a única alma viva por ali. Desliguei o carro e travei as portas. Olhei ao meu redor, já achando que eu estava no meio de uma cidade deserta, quando um som de coral desceu da basílica e invadiu meu peito apontando uma direção. Procurei uma saída dentro da imensidão do estacionamento e atravessei – sem nenhuma companhia – uma passarela que levaria até o meu castelo infantil, disfarçado de igreja. Lá, do alto da basílica, a vista da cidade e do céu de Aparecida cobriram meus olhos com uma paisagem que eu não esperava. Tive vontade de assistir a missa, mas nem quis entrar. Sentei nos degraus da porta lateral e encostei em uma coluna que me deixava com os olhos voltados para a vista e os ouvidos atentos as palavras que escapavam de dentro da igreja. Dali, ouvi o padre contar que gosto de tangerina o fazia lembrar de sua infância em algum lugar da Itália, do Natal e de sua família. Ele falava da importância da união e dizia que a presença de Deus estaria nas nossas mesas naquela noite. Achei bonito, concordei com ele sobre a importância da união, mas não conseguia parar de olhar para o céu de nuvens gigantes, ameaçando tempestade e uma cidade inteirinha embaixo dele, silenciosa e vestida de sua construção calcada na fé.

Era um lugar interessante feito o Vaticano que coincidentemente eu havia conhecido meses atrás, também interessada em algum contato com Deus, mas preferia esquecer. Lá, eu nem sequer entrei na basílica de São Pedro, mal desci do ônibus de turistas que circulava entre as principais atrações italianas. Lá, eu estava tão de saco cheio do oportunismo dos italianos e toda a ilusão que o meu cérebro classe-média havia criado sobre a Itália que peguei os trinta minutos de espera na parada do ônibus, entrei em um restaurante para tomar um sorvete, pedi duas bolas e sai sem pagar.

Acho que naquele momento, Deus classificou minha atitude como um grande pecado porque logo depois eu entrei numa depressão desgraçada. Foram cinco dias zanzando pelas ruas de Roma e chorando por todas as separações da minha vida. Enquanto via brotar do chão casais em lua de mel, chorei até pelo primeiro menino que gostei na pré-escola. Cinco dias comendo pior do que eu comeria se tivesse estragado minha própria macarronada e usando a boca somente para resmungar indignada, pedir a conta e vaiar (!) Roma. Mas… tudo bem. Roma e o roubo do sorvete no Vaticano não haviam sido experiências muito boas, mas era passado. No presente, as vozes cantavam pedidos de perdão, eu estava no pé da segunda maior casa de oração católica e ela me parecia um bom lugar para aprender a rezar direito e pedir desculpas pelo que afanei na primeira.

Hum… Como é que era mesmo? Bom, vamos lá… Pai nosso que estais no céu… Santificado seja… Putz! Puta raio foda!

Tapei a boca com as mãos com medo de represália divina vinda no formato de mais um raio, possivelmente direcionado para a minha goela. Passado o susto, achei melhor deixar a reza de lado e pedir desculpa conversando, do jeito normal que eu fazia desde criança…

Oi, Deus… Beleza? Tudo bem aí no céu…? Tá feliz? Hum… Quanto tempo, né? Então… Eu sei que hoje deve ter um monte de gente te enchendo a paciência, mas você sabe que nunca fui de incomodar. Pra dizer a verdade, nem sei direito porque estou aqui… Acho até que vim só pra descobrir, sabe? Por enquanto, tá tudo bem, tô indo lá pro Rio de Janeiro ver a Alice e o Silvio. Aliás, valeu por ter cuidado da Alice esse ano… Valeu de verdade. Mas parei aqui só de curiosidade mesmo… Nem vim pedir nada… Não, eu não vou roubar nada… Mas olha… Aproveitando a lembrança, com relação aquele sorvete que eu roubei na gelateria da Itália, eu sei que só fiz isso só pra contar vantagem para os meus amigos, dizendo que roubei sorvete de cristo, que foi como tirar doce de criança, mas espero não ter ofendido ninguém. Você sabe que eu tava triste pra caramba e só fiz isso porque fui sacaneada por todos aqueles italianos desesperados por grana e odiadores de turistas… Ok, ok… Vou me corrigir… “Todos os italianos que encontrei”, o que não significa “todos os italianos do mundo” … Às vezes, eu acho que até você que deveria, não tem a manha de generalizar só pra falar sobre um determinado assunto, sabe? Bom, o que eu sei é que Roma pode ser linda do jeito que for, mas é igual um homem bonito que desperta paixões deixando claro que em algum momento haverá sofrimento. É propaganda enganosa! Toda a cidade e seus arredores… Tudo marketing! Tipo o Vaticano que acha que é país, mas pra mim não passa de um bairro shopping-center de Roma. Você pode até ser a favor do Vaticano, mas aquilo não é certo. Se bem que… Sei lá eu se você é a favor de verdade, né? Enfim… Não quero me meter nos seus gostos. Você sabe que eu espero honestamente que você torça para todos os times, até pra quem joga sozinho, mas quem sou eu pra dizer o que você deveria fazer? Da minha parte, só quero mesmo é que fique claro que não tenho nada contra nenhum deles. Tanto que roubei o sorvete, mas tô indo fazer o raio da peregrinação, que é uma coisa que acho bacana e é adotada por um monte de gente católica… Tá vendo? Olha só como eu sou legal… Ok, ok… O que eu quero te dizer é que se você ficou puto comigo naquele dia, não devia, porque eu não mereço. Paguei preço de hotel cinco estrelas pra dormir em uma espelunca, em cima de uma cantina porqueira que me fazia acordar as sete da manhã com o cheiro do corte das cebolas. Viajei achando que eu ia me acabar na berinjela à parmegiana e descubro que qualquer cantina chulé do bairro do Bixiga dá de dez a zero nos restaurantes dos mal educados que conheci! E todo aquele papo de que a Itália é o país do amor, que o povo sabe paquerar? Sério, o que a Itália chama de paquera eu chamo de assédio sexual! Roubar sorvete foi pouco! Se eu não fizesse nada pra dar o troco naquela tristeza toda que eles me fizeram sentir, teria entrado no Coliseu e avançado nas pessoas ou largado o diacho do gelato pra procurar o Papa e dar-lhe uma pedalad… Puff… Beijoca na mão feito pedido de benção. Tá feliz agora? Enfim, Deus… Na boa? Já que estamos aqui, além de me perdoar por essa história do sorvete, você bem que podia me dar algum sinal de que estou no caminho certo da vida, né? Eu sei que passei a infância te dando perdido nas promessas, mas achei que estávamos de bem! Até o ano passado, nossas conversas pareciam poesia! Você fazia aparecer beija-flor sempre que eu estava na dúvida… Lembra? Então… Parou porque? Eu achava legal aquele papo de sinal… Hum… Você também acha que foi culpa minha a separação com o Wil, né? Cara, você tem que ser muito babaca pra achar que… Ok, não vou discutir com você porque você tem trovão e eu só tenho reclamação. Ok! Ok! E muita gra-ti-dão pela saúde. Muuuita! Tá bom assim? Ótimo. Agora, dá pra parar de tacar na minha cara que você tá careca de ser bom pra mim e eu nunca te dei valor? Sério… Eu dei e dou valor! Mas nunca me senti tão perdida como estou me sentindo esse ano e você fica fingindo que não me conhece mais… Pô, eu tô até indo em igreja! Não, não fui só de turista não! Entrei naquelas da Itália porque eram bonitas, mas depois você sabe que fiquei tocada. Chorei por horas! E de joelhos, pedindo pra você me ouvir! Chorei lá, tô chorando aqui, vou passar a virada do ano seguindo os passos de um cara que foi legal pra burro com você… Blá, blá, blá… Não tô chorando agora, mas dá vontade! Eu sei, eu sei que nem me dei ao trabalho de me informar sobre quem foi o José de Anchieta. Sei de tudo isso! Olha, com todo respeito, você sabe que eu acho verdadeiramente bacana seguir algum caminho espiritual e se as religiões se prestam a oferecer esse caminho, acho super válido. Mas você também sabe que se eu estivesse realmente feliz, não estaria aqui. Aliás, você reparou que é véspera de Natal e a cidade está as moscas? Você não acha que tá vazio desse jeito só porque o país está um pouquinho mais rico e, com dinheiro no bolso, o povo te abandonou e se mandou pra praia? Putz! Meu, cê é louco? Você deve achar graça de assustar as pessoas com esse negócio de relâmpago, né? Sério, não tem graça nenhuma. Eiiii… Dá pra parar? Vamos lá! Qual é o plano? Me castigar porque eu roubei a porra do sorvete na gelateria do Vaticano? Pecado é o Vaticano vender sorvete com a cara do Papa desenhada na casquinha! Quer saber? Problema seu. Eu não tô mais nem aí! Quer me relampejar, fica a vontade. Só de pirraça, agora eu vou peregrinar só pra ficar gostosa! Adeus à tentativa de voltar a falar com você, adeus à toda minha máxima culpa pelos conflitos de todos os meus relacionamentos! Adeus, espiritualidade! Adeus, humanos, porque daqui pra frente nunca mais falo com nenhum de vocês também! E, principalmente, adeus, Deus! Você que se…

E desabou o céu…

Hahahahaaha! Uiii… Ele faz chover quando tá bravinho! Uiii… Mimimimi! Mas que puta chuva sem noção, hein? Por que eu não fui embora daqui antes? Tudo bem que você estava caprichando no palavrão, mas cuspir nos outros é muito feio, sabia!?

Pensei em entrar na igreja pra me proteger da chuva, mas fiquei com medo de colocar em risco a vida dos fiéis. Corri de volta para o estacionamento tentando me molhar o menos possível e dar uma banana pra Deus, mas uma criançada passou voando por mim, me fazendo dar risada de todo o monte de bobagem que eu havia dito…

– O último que chegar do outro lado da “Passarela da Fé” é a mulher do padre!

E perdi a corrida…

Se na Itália eu tinha sido zoada pelos adultos, em Aparecida foi a vez das crianças. Além de ter corrido feito uma pata de tamancos, ainda escorreguei e cai de bunda na tal da “Passarela da Fé”. Cheguei por último e pior… Eu ri! E levantei e segui descalça e continuei rindo da minha cara junto com a molecada no meio da chuva. No final das contas, dei tchau para os pivetes como se eu fosse do grupo, recusei com gratidão a mexerica que um deles me ofereceu e segui em direção ao carro.

Me senti um pouco em paz depois de ter brincado nas pontes do castelo… Mesmo depois de ter bancado o dragão, sabe? Fazia tempo que eu não brincava…



Escrito pela Alê Félix
4, fevereiro, 2012
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– Por que você não para de inventar história e não escreve sobre a sua vida de verdade? Cara, você já se meteu em cada uma que daria livro bão, de umas trezentas páginas e faria um sucesso enorme com a mulherada.
– Voooo contaaaa desgraçaaaaa pros otroooo pra queeee?
– Porque mulher adora desgraça!!!
– …
– Consigo até ver você autografando um livro seguido do outro…
– É… tuuudo autografado com meu dedão!



Escrito pela Alê Félix
3, fevereiro, 2012
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