Ela levanta antes do sol, prepara o café de olhos fechados, acorda os filhos com o coração apertado, sacode o marido sem nenhuma alegria e se prepara para mais um dia. Se maquia de fantasia, se veste de mulher maravilha e se equilibra no salto, do alto da independência que acredita que conquistou.
Chama todos para o café, chama mais uma vez, dá bronca na empregada, coloca os filhos no ônibus escolar, despede-se do marido com o beijo diário, marcado pelo atraso do horário.
Dispara seus gritos acumulados na buzina do carro, organiza sua agenda em pensamento, respira a saudade de um último trago de cigarro. Com o trânsito parado e a mente acelerada, segue para o trabalho que só que lhe dá é trabalho.
Distribui sorrisos de bom dia, almoça alface, devora chocolate, liga para os filhos para certificar-se de que está tudo sob controle na terceirização da boa educação. Dá ordens, recebe ordens, dá conselhos à colega ao lado e esquece dos próprios caminhos onde possa ter errado.
Corre para a academia depois do expediente, precisa estar em forma. Corre para casa, o jantar não demora. Na mesa, conversa com o marido sobre o dia. Com os filhos, verifica a lição de casa, faz papel de mãe. Sem vontade, desiste do papel de esposa, mas finge um pouco mais. Determina a hora de todos dormirem e lê um conto de fadas enquanto acompanha com o olhar o adormecer do seu lar.
Ela não dorme. Não consegue. Toma um banho, lava a alma e o cansaço, mas não consegue dormir.
Tenta distrair-se no computador, mas acaba pagando contas, lendo más notícias e o resumo da novela perdida. Olha com frio na barriga para uma sala de chat, pressiona o “Enter” com uma leve sensação de pecado, sorri diante da tela, mas foge antes que a brincadeira ameace o seu reinado.
Questiona-se por um instante, proíbe-se de pensar. Agarra-se as certezas da rotina, da inabilidade pra liberdade, da vida que acredita ter sido uma escolha…
Estica as pernas no confortável sofá da sala, folheia algumas revistas e se dá por satisfeita por ter uma família. Aperta os olhos em busca do sono perdido, o sono não vem. Ela abre os olhos, olha à sua volta, abre a janela, fecha a porta, volta pra cama, apagam-se suas luzes diante da falta de show. Ela também está só… Completamente só.

* Escrito em 2005 no site Clube da Lulu. Salvando o passado antes que o provedor o jogue na fogueira do delete.



Postado por:Alê Félix
10/08/2011
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