Cortei o dedo com a faca do pão quando eu tinha uns cinco anos de idade e lembro, até hoje, do tanto que chorei achando que o corte me mataria. Um dia antes do acidente mortífero, uma vizinha havia falecido atropelada, ensanguentada no meio da rua. Eu não sabia nada sobre a morte, mas o zumzumzum da rua me dizia que tinha a ver com sangue, cabeça no mundo da lua e um passaporte para o céu.
Minha tia me deu um cutucão tentando ensinar a lição…
– Ó o que dá não olhar pro lado antes de atravessar a rua! Viu? Morreu de cabeça no mundo da lua! Igualzinho vai acontecer com você se não prestar atenção por onde anda.
Um homem na calçada dizia pro outro…
– Perdeu muito sangue… Já era. A morte é certa.
Meu avô apareceu no meio do povo, viu minha tia urubuzando a tragédia, me arrastando com ela e tratou de nos tirar de lá…
– Já pra casa as duas!
– Eu quero ver!
– Ver o que, menina? Gente morrer?
– Por favor! É a primeira vez que eu vejo de perto! Quero ver se a alma sai realmente pelo nariz! Por favor, deixa eu ficar… por favor, por favor.
– Vô, o que é morrer? O que é vai sair do nariz da mulher!? Me contem!
– Tá vendo o que você fez? A menina tem cinco anos, não tem idade pra saber dessas coisas não. Você nunca viu a morte e ela nem sabia do que se tratava até você trazê-la até aqui.
– Com a idade dela eu já sabia o que era… Não tenho culpa que ela é mimadinha bunda mole.
– Eu não sou bunda mole!
– É sim! Tem medo de tudo, é cheia de nhenhenhê… Blerg!
– Então me conta o que é morrer já que você sabe!?
– Não vou contar nada! Por sua causa a gente tá indo embora…
– Vô… me conta vai… O que é morrer?
– É uma viagem… Sem volta. Para o céu.
– Tipo… de avião?
– Não, sua burra! Só a alma que vai embora, não o corpo.
– O que é alma?
– É o fantasma que fala na cabeça da gente e que sai pelo nosso nariz rumo ao céu quando o coração para de bater. Mas só vai pro céu quando a alma tá muito cortada de emoção, repleta de sentimentos vividos…
– Quer parar de falar besteira pra menina! Vamos embora. Venham… Venham pra cá que levo vocês de volta pra casa.
– A gente tem um fantasma que mora dentro da gente!?
– Tem. A alma.
– E porque ela vai pro céu quando a gente morre?
– Nem sempre… Pode ir pro inferno se você for ruim e não aprender a fazer carinho nas suas cicatrizes. Se a alma estiver cheia de feridas que dão nojo e te fizerem sentir ódio, você vai pro inferno sim.
– Vôôôô… é verdade isso?
– Lá vai a chorona começar a chorar.
– Não vou nada! Eu sou forte!
– Não ouve o que a sua tia diz… Vamos embora. Não quero mais ouvir conversa.
Não chorei na hora, mas senti muita vontade e me senti tão, mas tão fraquinha e sem conhecimentos das coisas que talvez nunca mais adiantasse dizer que eu era forte e devesse assumir que não passava de uma mimadinha bunda mole.
Mas… No dia seguinte, depois de cortar o dedo na faca de pão, ao entrar em desespero achando que eu ia morrer, minha mãe tentava me acalmar e segurar enquanto minha avó ligava a torneira e empurrava minha mão pra debaixo da água, na tentativa de lavar o sangueiro todo. Minhas tias olhavam a cena e eu achava de verdade que nunca mais voltaria a vê-las, que estava prestes a deixar as brincadeiras da rua e veria, numa fração de segundos, meu fantasma ir para algum lugar que eu ainda não era capaz de saber se seria bom ou não.
Apesar de nunca ter feito nada aparentemente muito errado, já tinha dúvidas se meu destino seria o céu ou o inferno e se alguma das minhas malcriações ou pirraças infantis poderiam ser interpretadas como feridas na alma. Como eu não sabia de nada, só me restava experimentar as novidades dos sentimentos como a culpa e os questionamentos sobre a brevidade do corpo e como lidar com as emoções.
Quando o corte estancou e eu vi que não morri, apesar de ter soluçado todo o resto do dia e sentido muito, muito medo… Percebi que alguns cortes são menos profundos do que parecem na hora que o sangue se mistura com a água corrente e as nossas lágrimas. Minha mãe chorou comigo naquele dia, de tanto que me viu sentida. E pediu que eu me tornasse uma moça mais forte, menos chorona. Já, minha avó, profetizou o tempo de todos os meus processos de cura…
– Daqui dois anos você nem vai mais lembrar que isso aconteceu, nem vai reparar na cicatriz e vai rir desse escândalo horroroso que acabou de fazer. Ouça sua mãe e seja forte. É importante se machucar…
– Mas eu não quero morrer!
– E eu não quero que você seja covarde. Não vai ser um machucadinho qualquer que vai te matar.
– Vai sim!
– Não vai. Isso é mimo. Ser uma garotinha mimada é uma falha dos pais, mas tornar-se uma mulher mimada será uma falha sua. Você vai querer ser assim quando crescer?
Desligada que sou, me cortei diversas vezes depois daquele dia, chorei um pouco menos, mas nunca deixei de chorar toda vez que me machucava ou sentia medo ou perdia alguém pra vida ou pra morte. Nunca me senti forte, não consegui evitar alguns escândalos, mas disfarcei o suficiente pra não ver minha mãe chorando junto comigo ou deixar minha avó a par das minhas falhas de caráter. Percebi que os cortes doem mais na hora, que a dor passa, mas é ilusão achar que não vai doer mais um pouquinho nos dias seguintes. Aprendi que até cicatrizar é melhor deixar as facas de lado pra não correr o risco de sofrer de dor com um corte em cima do outro. E que a cicatriz pode ficar bem feia por um tempo, mas realmente se torna parte do nosso corpo em pouco menos de dois anos. Algumas mais largas, outras quase invisíveis, mas todas elas com uma história de vida ou de morte, de céu ou inferno, de família ou fantasma e um único remédio: aconteça o que acontecer, não esquecer de encher a alma de soluções antissépticas e rezar pra ela ter experimentado tudo o que precisava para – um dia – escapar pelo nosso nariz e se mandar direto para o céu.
Essa tia é muito mal educada, e a menina bem que podia deichar de ser mimada, mas ela não teve culpa de chorar ela não sabia que ficaria viva, mas mesmo assim tem que ser bem educada e deichar de chorar a toa e ser tão mimada.
Que tia mal educada, ficar assustando e chingando a menininha de 5 anos, mas ela tambem tem que deichar de chorar tanto e de ser tão minada, mas o corte com a faca de pão ela ela não teve culpa de achar que ia morrer ela achava que qualquer corte a mataria e estava mal informada sobre o que é a morte, sem contar o erro dos pais delas ao criala tão minada, isso tudo não aconteceria se a tia dela não a tivesse levado para ver o acidente, a culpa é dela :D.
Gostei muito do video pois falava da infancia e a natureza, brincadeira no balanço.
6 A – Aluna Nataly
eu adoro textos assim… que começam falando de uma coisa e, de forma incrível, terminam falando exatamente sobre a mesma coisa, mas com outro sentido. lindo!