Achei que minha casa tivesse se tornado um monstrinho triste e perverso, que me expulsaria daqui dia após dia com seus instantes de silêncio e solidão. Mas eis que, de repente, acordo com a agenda cheia e uma vontade enorme de abrir as janelas, deixar o sol entrar e ficar por aqui… Sozinha, escrevendo, descobrindo, experimentando, cuidando de mim e novamente da minha casa. E é como se ela estivesse me agradecendo, sorrindo, respirando aliviada por eu parar de responsabilizá-la. Acho que os dias de cão acabaram… Tomara que o dia de hoje só se pareça com um sonho… Que esteja próximo o ponto certo do equilíbrio, o começo da serenidade que eu achava que encontraria na rua, mas é óbvio que só pode estar aqui dentro.
– Já está podendo falar?
– Sempre pude.
– Perguntei por causa do seu texto sobre passar um tempo em silêncio. Mas que bom que já passou. Se é que passou. Enfim, só queria mesmo saber se você está bem…
– Tô.
– Eu me preocupo com você…
– Por que?
– Achei que depois da viagem pra Europa você voltou um pouco triste. Mais centrada, mas triste.
– Talvez… talvez. E com você? Tudo bem?
– Tudo bem também. Estou trabalhando e estudando. O restante é música.
– Espero que boa música…
– As vezes, temos que dançar conforme a música.
– …
– Sabe o que estou querendo de verdade?
– …
– Uma cópia do seu texto sobre nós quando éramos adolescentes. Quero guardar com muito carinho, fiquei muito feliz quando li.
– Eu mando para o seu email.
– Tá bom…
– …
– Certeza de que está tudo bem?
– Anram.
– Bem, acho melhor eu ir dormir e tentar sonhar com você, com a época que éramos quase crianças e quase adultos, saíamos pra tomar água de coco, esquecíamos da vida e tudo parecia perfeito.
– …
– Água de coco é bom, sabia?
– Tanto quanto quebrar o aparelho de som.
– Verdade… verdade.
– Lembrei de uma música da Marina… Mas deixa pra lá. Beijo. Dorme bem.
– Qual música? Agora me deixou curioso.
– Bobagem. Bom sono.
– Por favor… Que música?
Gosto daquele amor que nos desperta o sossego, que não atiça o ciúme, aquele que nos permite a entrega e nos faz dormir. Sabe qual é? É tão bom quando acontece… Não entendo quem diz que precisamos lutar pra fazer uma relação dar certo, fazer o amor chegar… Tão bom quando ele vem sem luta, quando vem sorrindo e desejando um pouquinho mais da proximidade necessária para cuidarmos bem um do outro. Troco a segurança pela esperança, a rinha pela boa companhia. Troco as bandeiras brancas das relações de tensão, pelos lençóis brancos das relações de tesão. Troco paixão obsessiva por paixão construtiva, as águas passadas por caminhar de mãos dadas. Gosto do amor com a paz mas, se preciso for, me agarro a paz e juro que dessa vez deixo pra lá o amor. Vou olhá-lo de soslaio, chamá-lo de impostor, sair pra passear…
Quando começamos a contar para as pessoas o que havia acontecido, nas palavras dele, foi assim…
E então, depois de um dia de trabalho exaustivo, decorrente de uma semana de trabalho exaustiva, lá estava eu, em casa, me preparando para dormir logo após uma saudável refeição altamente nutritiva (um X-Bacon, é lógico). Últimas repassadas nos e-mails… Checada nos tuítes… Uma visitinha ao Face… E veio aquele calafrio, seguida de uma tiritada de frio! Num arresisti e atualizei o status lá do Face dizendo o quão frio estava. Exatamente 14 minutos depois eu recebo, direto de Sampa, a seguinte mensagem:
“Vamos pra FLIP, tipo… agora?”
Coisa mais inusitada! Me pegou totalmente de surpresa! Avaliei o que foi proposto, ponderei acerca das consequências, analisei as dificuldades, perdi-me em pensamentos acerca dos eventuais desdobramentos de um ato eventualmente tresloucado de pegar estrada naquela hora, enfim, considerei fria e calmamente todas as possibilidades mediatas e imediatas acerca daquela proposta. Nisso devo ter demorado aproximadamente uns 0,013 segundos…
Já na minha cabeça…
Sabe quando você olha a sua volta e sente que tem a vida mais besta e sem graça do mundo? Era assim que eu estava me sentindo. Uma semana inteira trabalhando! Sete dias seguidos com os olhos grudados em frente ao computador, bolando estratégias malucas pra fazer o nome de um filme ecoar pelos quatro cantos do país. Trabalho, trabalho, trabalho e mais nada, sabe? Nenhuma diversãozinha básica. E tem gente que ainda acha que o que eu faço é glamouroso… Pfff! Eu estava na labuta numa sexta-feira, as onze da noite, sentada numa cadeira do papai, de pijama, xícara de chá de camomila na mesinha ao lado, notebook no colo, pantufa das tartarugas ninjas nos pés, dois aquecedores ligados na sala porque um só não estava dando conta do recado. Cenário lindo, né? Pois é… A vida de uma web-editora-escritora-marketeira pode facilmente ser confundida com a de um aposentado que ainda acha que dá um caldo.
Pra espantar o tédio e os pensamentos, abri o Facebook. Não adiantou muito, já que a timeline não ajudava em nada, contando somente que meus amigos estavam todos ocupados exibindo suas vidas off-line na on-line. Antes que eu implorasse ao Mark Zuckerberg um botão de “não curti”, vi ele postar uma frase manifestando toda a sua alegria por jantar um… X-Bacon!? E ainda fazia graça com aquele tempo horrível de gelado. Era o próprio Macaulay Culkin, vivendo uma espécie de versão adulta do Esqueceram de Mim…
E eu a cem quilômetros de distância, praticamente falando sozinha…
“Pfff… Como é que alguém pode tuitar felicidade só por causa de um x-bacon?”
E sorri de saudade do bestão, sem mover um dedo pra deixar ele saber disso. Mas, inevitalmente, continuei pensando…
“Isso… Vai em frente. Dá vontade de responder que quem precisa de bacon constrói pontes de safena, mas se eu fizer isso ele vai saber que é indireta e indiretas pela internet me deixam doida e eu cansei de ser doida. Além do mais, uma indireta chama outra indireta e, quando a gente vê, tudo parece que foi escrito com uma intenção, viramos o centro do universo e tudo passa a parecer teoria da conspiração. Não… Deus me livre. Cansei (mesmo!) de ser doida.”
Quieta no meu canto da internet, deixei ele quieto no dele. Um momento histórico de sanidade que durou uns 0,013 segundos, até que vejo ele postar outra mensagem e voltei a pensar…
“Sério que você também vai passar a noite postando no Facebook? Putz… Como a gente é loser…”
Comecei a achar que a vida dele talvez estivesse tão besta feito a minha e seria o fim da picada se deixassemos isso acontecer só porque já era quase meia-noite e só porque somos adultos, sensatos, equilibrados o suficiente pra não nos deixarmos levar por impulsividades do tipo…
“Vamos pra FLIP, tipo… agora?”
Juro que não sei porque cliquei no maldito botão de enviar mensagens e escrevi aquilo. Eu tinha certeza absoluta de que ele diria não. Mas…
Palavras dele…
Bem resumidamente tivemos o seguinte diálogo:
“cê tá falando sério?” – rondou-me a desconfiança de uma piada que eu não havia entendido.
“tô” – lacônica resposta, sem explicação ou motivação.
“então vamos” – afinal de contas o assunto já havia sido exaurido mentalmente numa ferrenha discussão comigo mesmo já há muitos segundos atrás.
Combinada a viagem no carro dela, ficou de passar em casa dali a duas horas para me pegar. Quatro horas depois lá estava ela. Ah, essas mulheres…
Palavras minhas…
Nem voltei no Facebook pra ver a resposta! Se ele não tivesse entrado no MSN pra se certificar de que eu não havia escrito do dedo pra fora, eu teria ido dormir. Ele perguntou se era sério, falou alguma outra coisa sobre a volta, eu disse qualquer coisa para que mantivéssemos o foco na ida e, quando vi, desliguei o celular dizendo que chegaria em Jacareí em duas horas.
Me pergunta se dois minutos depois eu sabia o que era tédio? Nem lembrava mais! Aumentei o som e sai dançandinho a trilha sonora do The Blues Brothers. E, como costumo ser muito prática, foi jogo rápido: certifiquei-me de que todas as notas sobre o filme estavam programadas e apertei o botão de desligar fazendo a oração do off-line…
“Querido Deus… Eu vou desaparecer um fim de semana inteirinho e espero que ninguém perceba e se perceberem por favor faça com que o filme seja a maior bilheteria do ano e ninguém me aborreça.”
Dei uma olhada no melhor caminho indicado pelo Google Maps, desliguei o notebook, corri pra tomar banho, passei um tempo olhando pro meu guarda-roupa como se ele fosse uma equação matemática sem solução aparente, liguei pros amigos que estariam em Paraty, resolvi a equação escolhendo algumas roupas, botei a fofoca em dia, fiquei na dúvida se levava ou não o pijama, carreguei a bateria da câmera fotográfica, verifiquei os celulares, achei um absurdo eu ter dois celulares, esqueci os óculos, voltei pra pegar os óculos, troquei a bota pelo tênis, levei mais uma blusinha, mais um casaco, troquei de batom, sorri pro espelho, fechei a porta, parei no posto de gasolina, verifiquei se estava tudo certo com o carro, com meus documentos e…
“Putz… Ainda bem que não esqueci o GPS!”
Quatro horas depois, eu estava em Jacareí esperando por ele no portão do condomínio errado, cem metros depois do que ele mora. Mas…
“Putz… Três da manhã! Ah… Tudo bem… Paraty é logo ali mesmo.”
A seguir cenas dos próximos posts…
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Perdi minha cabeça ontem a noite. Se alguém encontrá-la, ela atende por qualquer expressão ou adjetivo pejorativo que lhe pareça minimamente convincente: fraca, maluca, fora de órbita, lelé, desorientada, avoada, sem noção, no mundo da lua ou simplesmente – por conta da força do hábito – pelo meu nome próprio ou apelido. Recompensa-se bem. Tem uma alma doente a espera.
As horas tictaqueavam enquanto a vida passava despercebida entre as palavras que liamos, escrevíamos e os verbos que não experimentávamos…
O tempo gelado, os músculos paralisados, o trabalho realizado, a rotina constatada, uma viagem não programada, a noite estrelada, o carro acostado, o abraço apertado, o silêncio bem-vindo, a estrada interditada, o ombro contraído, o ombro dolorido, a vontade de voltar atrás, a coragem compartilhada, paixão silenciada, carinho desinibido, amor de passarinho, a falta de sinal que liberta, o frio ou o arrepio, a entrega sem juízo, o corpo esparramado pelo corpo, o ombro relaxado, o desconforto escondido, o sono quando não basta, a intimidade quando não chega, o mar que nos invade, a cidade quando declama, a saudade quando reclama, a notícia quando coroa, os amigos quando nos faltam, os conterrâneos quando se abraçam, as taças quando brindam, os sinais que incomodam, os casais que comemoram, os presentes que alimentam, as partidas que arriscamos, os retornos que confundem, o caminho que estamos e não desfrutamos. Deus e os livros usados como desculpa para que nossas mãos escrevam e se estendam. A carta, o café, a cama, uma faixa de areia em um dia de inverno de despedida. O oi, o tchau e o agora. A vida que passa, a vida que acaba, nossos olhos que nos traem, o caso que permanece, a memória que se esvai, a notícia quando entristece, o fim quando acontece, a manhã quando recomeça, os olhos quando se abrem, os pés quando tocam o chão e a gente quando levanta e segue em frente e enfrenta… até mesmo nosso coração.
Para uma mulher que eu admiro e acabou de perder o pai, para o rapaz que mais me protege e acabou de perder a avó, para que eu me permita seguir em frente e para os bandeirantes perdidos.