Acabei de sonhar que estava com a minha família em um ponto de onibus, minha mãe pegou um taxi com meu sobrinho, meu pai um onibus com meu irmão, eu fiquei pensando, pensando, pensando… E me dei conta de que devia ter ido com eles porque meu celular estava sem bateria, sem crédito, e eu não fazia a menor idéia de onde estava. Subi as escadinhas do onibus que estava parado no ponto sem saber pra onde ele ia porque me deu desespero não sair do lugar só porque não sabia pra onde ir.
Sentei em um dos primeiros bancos, ao lado de uma moça de cabelos cacheados que não gostou nada nada de dividir o espaço e se espalhou um pouco mais antes que eu me acomodasse. Tentei lembrar o nome do onibus que meu pai pegou, tentei lembrar algum nome de rua, alguma esquina conhecida, alguma paisagem familiar… Nada, nenhuma lembrança, nenhuma pergunta, nenhuma resposta, silêncio dentro, barulho fora… Segui sozinha até o ponto final.
Wil foi embora ontem de manhã, Rube voltou do hotel a tarde e tirou do bolso a chave do apartamento e o contrato de locação assinado. Disse que arranjou uma namorada só porque pedi para o Wil ficar aqui em casa dessa vez, pedi um tempo para o Wil porque preciso aprender a ficar sozinha… Vestimos os sorrisos e expressões dos civilizados… e dos hipócritas.
Machucados devem sangrar um tempo… Devem sangrar sem curativos porque curativos fazem esquecer da dor e da cicatriz, mas um dia eles precisarão ser descartados e trocados por outro e outro e mais outro até encararmos as feridas como elas realmente são quando estão abertas, sujeitas a infecção, expostas ao tempo, sarando com o tempo, formando suas próprias cascas de proteção.
Quando eu tinha uns dezesseis anos queimei a batata da perna no escapamento da moto de um moço bonito que dizia ser louco para me dar uns beijos, mas era noivo e carregava o peso da nossa diferença de dez anos de idade. Com uma garota de dezesseis, mesmo sendo grandalhona e falastrona, isso pesava, mas não o empedia de me levar da escola pra casa.
Minha mãe sempre teve pavor de motos e muito mais de imaginar suas filhas montadas nelas. Quando vi o tamanho da queimadura a dor foi menor do que pensar no que diria a ela e lembrar que, no dia seguinte, viajariamos de férias para o Rio de Janeiro. Vocês não fazem idéia do que é cuidar de uma queimadura na perna sob o sol carioca, nas areias de suas praias e com a vaidade dos biquinis e minissaias da adolescência.
No meio da viagem, já formando casquinha, liguei pra uma amiga que me contou que o moço da moto havia adiantado o casamento e a festa seria naquela noite. Sentei num banquinho perto do orelhão e sem querer comecei a cutucar as beiradas daquela casca que anunciava uma grande cicatriz… Mexi, mexi, arranquei um téco, deu vontade de tirá-la inteira e soltei um “ai” de lágrima e de dor de cotovelo disfarçado de machucado na batata da perna.
Aos dezesseis anos somos uns otários corajosos… Levantei, entrei com fé na fila do orelhão, esperei minha vez com a impaciência dos que acham que a batalha será uma barbada, liguei para o moço da motoca e…
– Você não pode casar!
– Alê?
– Por que você adiantou o casamento?
– Eu…
– Você não gosta dela… Você gosta de mim! Eu sei que sou muito nova pra você, sei que meus pais te odeiam e a sua noiva levaria um choque porque ela nem deve saber que eu existo, mas ainda dá tempo de contar e… Espera só um pouquinho… Dá pra segurar esse seu cachorro, por favor?
– Anh?
– Nada… Um cachorrinho aqui na fila… Peraê.
– Que?
– Moça… Ele é pequenininho, mas late muito alto. Atrapalha!
– Você tá me chamando de pequenininho?
– Não! Tem um cachorro de verdade aqui, não tô falando de você não. Imagina que eu faria uma analogia dessas… Só porque você tem uma CB400 e ele é pequinês?? Então… Ainda dá tempo de você contar tudo apesar de não ter muito o que contar porque nunca aconteceu nada demais entre a gente. Só dizer que você descobriu que me ama. Só isso. Diz que não gosta mais dela e que… E se você inventar uma doença contagiosa? Moça, dá pra segurar esse cachor… Pára! Sai daqui! Me solta! Solta! Larga. Me larga droga de cachorro idiota! Aaahhhh….
A ridicula da menina foi mexer na coleira do demoniozinho, ele pulou do colo dela, danou-se em cima de mim e depois de eu ter pago o mico de correr de um mísero pequinês em pleno calçadão de Copacabana, ele ainda me mordeu bem na queimadura. Sim, a mordida de um cachorro possuído pelo capeta misturada com as casquinhas de queimadura causada por uma CB400… Fora o medo de pegar raiva.
Não peguei… Acho. Demorou pra sarar, a cicatriz existe até hoje apesar de ser imperceptivel a maior parte do tempo. Ele casou, ouvi dizer que separou e casou de novo mais umas três vezes e acabei de perceber que não consigo lembrar o nome dele de jeito nenhum…
Se eu der sinais de que estou apaixonada ou envolvida com alguém nos próximos seis meses, atirem em mim. Preciso deixar sangrar sem curativos.
Como somos corajosas aos 16, não é mesmo?
Vou desconsiderar o seu pedido final. OK?
Como somos corajosas aos 16, não é mesmo?
Vou desconsiderar o seu pedido final. OK?
hum, então nem preciso te chamar para ir ao clube de tiro nos próximos tempos, não é? 🙂
“Aos dezesseis anos somos uns otários corajosos… ”
prazer, Aline.
aos 28 somos otários ainda, só que já meio sem coragem…
ah!
vou plagiar o seu pedido, ok?!
podemos montar um clube!
clube-das-feridas-abertas!
Pronto, tou na merda… saco. 😛