Depois de almoçar com uma amiga fui andar na praia: calça jeans dobrada até o joelho, camisetão, câmera fotográfica enrolada em uma canga, chinelo comprado no dia anterior. Queria pôr os pés na areia, sentir um pouco de água salgada agarrando meus pés, queria ficar um pouco em silêncio. Estiquei a canga, me desprendi dos chinelos, fotografei um pouco do meu céu carioca. A praia estava vazia, um desses fim de tarde com brisa gelada e cores do inverno…
Ando muito friorenta… Foi a primeira vez que senti frio na minha cidade dos sonhos. Definitivamente não gosto de frio. Em lugar nenhum, nem mesmo o do Rio.
Um garoto parou de bicicleta perto de onde eu estava e perguntou se eu podia olhá-la para que ele pudesse entrar no mar. Eu disse que sim e continuei olhando para o horizonte através das minhas lentes. Não sei quanto tempo ele passou no mar porque me distraí completamente com meus pensamentos e cliques. Só me dei conta da presença do garoto quando, já de volta, próximo da bicicleta, ele…
– Tá com cara de apaixonada, hein moça?
– Anh?
– Você… Olhando assim para o nada… Com esse sorriso incontrolável nos lábios. Isso é cara de amor… Olhar de paixão.
Sorri amarelo para o menino como se tivesse sido pega em flagrante…
– E você lá tem idade pra reconhecer “cara de amor”, garoto?
– Claro que tenho!
– Anram… Sei.
Sorri como se estivesse debochando da sua pouca idade, mas não quis lhe tirar a liberdade de continuar a conversa…
– Você diz isso porque pareço mais novo do que realmente sou. O que eu tenho é carinha de bebê. Vou fazer o quê? Só posso desejar que eu continue assim até o fim, né?
– …
Sorri em silêncio… Ele continuou:
– … Respondendo a sua pergunta… Apesar da minha idade, eu já amei de verdade uma menina.
– Hum… Uma menina? Que bom…(risos).
– (risos) E, você, só me sacaneando, né? Só vou deixar pra lá porque você olhou minha bicicleta, tá?
Mantive a comunicação através de sorrisos, meio que sem saber direito o que dizer, mas ele insistiu…
– Amor não escolhe idade não…
Respirei fundo e…
– É? E que idade vocês tinham quando esse amor aconteceu?
– Ela era mais velha do que eu dois anos.
– Hum… O que não me parece uma diferença nada significativa.
– Quando se tem doze e ela quatorze? É sim…
– É… Nesse caso pode ser que você tenha mesmo razão. Com quatorze anos tem muita menina que já é mulher feita…
– (risos) E homem é menino pra sempre…
Sorri por encanto com o jeito que ele falou, lembrando dos “meninos” que um dia eu amei e sem conseguir lhe tirar a razão de tudo que dizia.
– Então nunca existe diferença?
– Só quando a gente quer que haja…
– Hum… (e sorrisos…). E cadê a sua menina?
– É uma longa história…
– Eu gosto de histórias…
– Posso sentar pra contar?
– Só se prometer que não vai me levar a carteira.
Ele sorriu incrédulo, sem palavras e eu sorri atropelando as minhas enquanto lhe contava um fato acontecido no dia anterior…
– É que o último garoto carioca que sentou do meu lado levou quase tudo que eu tinha com uma simples aposta (risos)…
– Bom, eu nunca jogo… E agora já sentei.
– Tô brincando. Eu tenho uma boa intuição sobre o caráter das pessoas. Ou pelo menos costumava ter…
– …
A gente falava e calava entre reticências e sorrisos, num papo leve e tranquilo. Existia uma aura de verdade em cada palavra, mesmo quando as frases e tentativas de conversa eram interrompidas pelo barulho do vento, do frio ou das ondas.
– Mas, então… Me conta da menina que fez você achar que reconhece paixão estampada no rosto de mulheres desconhecidas no meio da praia…
– Pois é… Minha vizinha! Morena, assim feito você… Cabelão despenteado e tudo.
– Não tá despenteado!
– Jeito de falar… É bonito. Tanto que o seu me lembrou o dela. E ela era uma menina linda…
– “Era” por quê? Ficou feia?
– …
– …
– … Ela morreu.
– … Sério?
– …
– Olha… Desculpa… Como é que eu ia imaginar que uma garota tão jovem…
– Não, na boa. Faz tempo… Já tem três anos que aconteceu.
– Mas… Como assim? É sério de verdade? Você disse que ela tinha quatorze anos… Tão nova… O que houve?
Ele deu um longo suspiro, esfregou os olhos por conta do vento de areia e não porque ainda estivesse precisando chorar. Tranquilo, sereno, ele respirou curto, respondeu quase como se fosse possível expressar saudades entre o espaço de uma palavra e outra, até formar a frase inteira, até soar como se fosse um desabafo, uma confissão…
– Acho que foi porque a gente se beijou…
– Anh? Como assim?
– É sério… Fomos o primeiro beijo um do outro. E até hoje eu me pergunto se ela teria tido as idéias que teve se a gente não tivesse se beijado, sabe? É por isso que tô dizendo isso pra você…
– Me conta a história do começo?
– Conto… É engraçado lembrar do que aconteceu naquela época… Nunca mais falei sobre isso com ninguém…
– …
– Você já percebeu que quanto mais coragem a gente se esforça pra ter quando toma uma atitude, mais corajoso a gente fica pra próxima? Sempre que tomamos uma atitude corajosa parece que as próximas ficam mais fáceis de serem tomadas. Já reparou nisso?
Pensei na pergunta um instante, lembrei da quantidade de vezes que venci meus medos… Desde a lembrança do dia que fugi da pré-escola e corri sozinha até a porta de casa (eu morria de medo de voltar sozinha da escola pra casa), lembrei inclusive que foi aquela sensação forte de medo vencido que fez com que – no dia seguinte – eu me atirasse de cima do guarda-roupa com uma toalha azul amarrada no pescoço… Gesso por alguns meses, mas coragem o suficiente para pedir que todos assinassem no braço da super-menina que eu achava que estava me tornando. Lembrei das relações que consegui terminar, mesmo achando que não viveria sem elas, mesmo achando que nunca mais viveria histórias mais legais, encontraria pessoa mais legal. Lembrei de tanta coisa boa que aconteceu depois desses fins, de cada momento que nunca teria existido se um final anterior não tivesse sido corajosamente acontecido.
– É… Você tem razão. Mas me conte da sua menina…
– Uma amiga dela me apresentou pra turma porque eu era novo no prédio. Eu era tímido, vivia mudando de cidade por causa do trabalho do meu pai e ela era toda extrovertida, falante, cheia de amigos… Fiquei meio sem graça no começo, mas conversamos tanto… E era sempre tão divertido que depois a gente não conseguia mais parar de se ver. Ela era a menina mais legal que eu conhecia… Não tinha essas frescuras que as meninas têm de não conversar com menino mais novo, sabe? Ela conversava com todo mundo igual, mas entre, desde sempre, havia uma sensação de uma afinidade maior.
Sorri um sorriso de compreensão, daqueles que fazem a gente lembrar dos amores amigos que encontramos e reconhecemos pela vida, assim, logo de cara…
– Sei como é…
E era tão raro…
– Ela dizia que não se envergonhava de conversar comigo, como eu achava que talvez pudesse acontecer. Que eu era a única pessoa que ela falava sobre o que tinha vontade de fazer da vida, sobre o que sentia, sonhava…
– E ela queria muitas coisas da vida?
– Sabe que não? Cara, ela tinha vontade de coisas simples… Passear, viajar, namorar… Ela ainda nem sabia o que queria ser quando crescesse, quando fosse adulta. O que ela queria mesmo era passear… Passear sozinha. Sem pai nem mãe. Acho que ela só queria mesmo era ver a cidade e o resto do mundo com os próprios olhos.
– É, mas nessa idade… Não sei. Hoje em dia isso é complicado, né? Não sei como eram os pais de vocês com relação a isso, mas só o que se vê por aí são pais super-protetores, cidade perigosa… Complicado deixar filho sair por aí sozinho.
– E foi mais ou menos isso que aconteceu…
– O que?
– … A gente se beijou numa brincadeira de beijo, abraço e aperto de mão. Sabe qual?
– Anram…
– Foi bem legal, mas aí a vergonha apareceu… Ela parou de falar comigo por uns dias e eu quase morri de tanta tristeza. Senti tanto a falta das conversas, do beijo e da companhia que criei coragem e fui até a casa dela pra pedir que a gente não mudasse um com o outro.
– Corajoso da sua parte… É difícil fazer isso nessa idade. Aos doze anos, numa hora dessas, a gente só pensa em sair correndo e se enfiar num buraco. Se bem que… Sei lá. Talvez isso nem tenha a ver com idade. Vez ou outra os buracos ainda me protegem…
– É mais fácil a gente se esconder, né?
– É…
– Pois eu me arrependo de não ter ido lá antes… Talvez, se eu não tivesse esperado tanto, pudesse ter salvado minha menina de algum jeito.
– Mas o que você podia ter feito que não fez?
– …
– …
– No dia que eu fui até a casa dela, ela não estava. Tinha saído com a mãe. Eu fiquei angustiado, mas voltei pra minha casa e esperei… Ela morreu nesse dia.
– …
– Ela insistiu com a mãe que queria passear sozinha, que já tinha idade pra sair quando quisesse. Pediu uma volta de metrô e a mãe aceitou, contanto que a deixasse em uma estação e a pegasse na outra.
Pareceu brincadeira do destino… Ela morreu com um tiro de bala perdida na saída do metrô onde a mãe dela a esperava… Dá pra acreditar?
– …
– … Durante muito tempo eu não soube o que fazer com a dor que eu senti. Pode parecer egoísta da minha parte, mas eu queria ela de volta muito mais por mim do que por qualquer outra coisa. Queria um segundo beijo, queria reencontrá-la nem que fosse só mais uma vez, queria que ela tivesse conhecido outras estações…
– …
– Ei… não contei essa história pra te fazer chorar. Desculpa…
– Não, não se preocupa… Tá tudo bem. E me desculpa você pelo choro… É que… Eu realmente não esperava por isso. Desculpa, eu nunca sei o que dizer nessas horas…
– Não tem que dizer nada não… Tem dias que é melhor a gente só ouvir… Ouvir, olhar pra dentro e seguir em frente…
Limpei as lágrimas com um pouco de raiva da vida, ele continuou…
– É seguir conhecendo as estações que faltam…
E sorriu como se lesse meus pensamentos e quisesse me dar um pouco de esperança.
– …
– …
– Pra quê? Pra perder tudo no final?
– A gente sempre perde no final, moça…
– Ela podia ter se perdido de propósito…
– Só porque a gente faz isso o tempo todo?
– … Fugir nem sempre é má opção.
– Mas se perder assim, por rebeldia ou comodismo, será que não é só mais um jeito covarde de não lutar honestamente pelos nossos desejos?
– E que diferença isso faz no final?
– Que diferença você quer que faça?
Ficamos em silêncio um tempo, ele foi embora primeiro, com as despedidas normais de um menino de quinze anos. Voltei pra casa arrastando os pés na areia de Copacabana, me perguntando como é que um garoto naquela idade podia pensar e falar sobre a vida daquele jeito. Me perguntando se sabedoria vem com a idade ou nasce com a gente. Questionando o tanto de coragem que é necessário para andarmos sozinhos e o tanto de amor e verdade para seguirmos juntos… Lembrei o quanto briguei com meus pais para que eles aceitassem minhas idas e vindas com as próprias pernas. Lembrei de todas as dores de amor que me trancaram em casa e das que me empurraram pra vida. Voltei para São Paulo ao invés de fugir… Me perguntando em quais estações eu pararia por um fim de semana, por paixão, por mais uma história… Qual delas poderia me fazer querer ficar para sempre, qual delas se tornaria minha última viagem. Lembrei de quem não tem medo do fim, fiz figas pelos que acreditam que a viagem não acaba no lugar que a gente chama de ponto final, quis roubar um pouco da fé do meu menino do Rio…
Segurei as lágrimas ao lembrar de uma música da Rita Lee que diz: “Não vou chorar se por acaso morrer do coração. É sinal que amei demais… Mas, enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz.”.
Peguei o avião algumas horas depois. Sozinha. Completamente sozinha, mas com o coração cheio de lembranças e os olhos transbordando uma rara paixão pela vida. Exausta, coloquei os fones de ouvido para espantar os pensamentos com música, mas não adiantou… Baby, junto com minhas preces, pedia para deus proteger-te.
Alê Félix – alefelix@gmail.com