Oito horas da manhã, eu sozinha naquele fim de mundo da casa dos meus pais e, mesmo assim, algum excomungado
insistia em me acordar com o barulho da campainha. Pra piorar, garoa. Muita garoa e muito cinza claro no céu. A
pior garoa paulistana é a da virada do ano. Não bastasse mofar na cidade vazia, ainda precisamos agüentar esse
chove-não-molha que acontece em quase todos os reveillons. Eu não achava o chinelo de jeito nenhum. E,
como o imbecil estava prestes a tocar a nona sinfonia apertando a maldita campainha, atravessei o quintal
molhado descalça e do jeito que eu acordei.
Segui preparada para amaldiçoar o infeliz, quando abro o portão e me deparo com duas alegres balzaquianas:
– Feliz ano novo! Feliz ano novo! Viemos buscá-la. Vamos fazer compras.
Eram minhas amigas… As únicas que sobreviveram às transformações da minha adolescência, meu mau humor e à
minha ausência.
– Vocês sabem que horas são?
Amarrei a cara e apertei o passo para fugir dos pingos. Satisfeitas com a sacanagem matutina, elas me seguiram.
Nossa velha amizade sempre consistiu em tentarmos atingir, um dia, a inimizade. Só pode ser este o motivo de
sermos tão cretinas umas com as outras. Eu ralhando do horário, do tempo e…
– Puta-que-o-pariu! Pisei na merda.
Dez anos sem cachorro em casa e sem a preocupação de olhar por onde eu piso. Eu havia esquecido completamente da
existência da Sasha. Sasha é a rottweiler que o meu pai comprou para substituir a dobermann que cresceu comigo.
A dobermann, antes de sua morte trágica, jamais cagaria cocozinhos tão imperceptíveis aos olhos humanos. A Sasha
é uma tragédia. Ela deve achar que, só porque aprendeu a rolar sob o comando do meu pai, pode defecar toneladas
de trocinhos pelo quintal. E eu com os dedos dos pés desnudos…
– Caralho, caralho, caralho!
As duas, cagando de rir…
– Alê, relaxa! Pisar na merda é como ter a casa invadida por um rato. Parece nojento, mas é sinal de bons
presságios. Ainda mais em plena virada do ano, isso deve ser um bom sinal.
– Bom sinal porque os vãos são meus e não seus! Puta-que-o-pariu… Onde está a mangueira, o listerine, o pinho
sol?
– Você não é iniciante nesse negócio de pisar na merda. É uma veterana, relaxa. Se não me falha a memória, uma
de suas pisadas fez o Rubens se apaixonar por você.
– É veterana em dar moradia para ratos também. Lembra da ratazana que invadiu o apartamento da M’Boi e ela ficou
com dó de usar uma ratoeira?
E riam…
– Por que vocês não vão a merda?
– Porque você pisou nela antes da gente!
E, às minhas custas, as duas patetas se divertiam cada vez mais. Eu querendo paz e ganhei a companhia ilimitada
daquelas três mulheres da minha antiga vida de solteira. Era o que me faltava para fechar o ano…
– Vai, Alê! Vai lavar as partes, porque já estamos atrasadas.
– Atrasadas? Eu não vou a lugar algum.
– Vamos sim! Temos uma lista enorme de mandingas para preparar até a meia-noite. Já calculamos a sua numerologia
e fizemos umas anotações pra você.
– Oi! Tem alguém aí nessa cabecinha loira? Sou eu! A sua chata e velha amiga descrente. Eu não acredito nessas
porcarias! Esqueceram?
– Querida, finge que eu sou surda e conversa aqui com a minha mão!
– Vocês andam lendo aquela merda de blog suas vigaristas?
– E não esquece de escovar os dentes. Sua boca está mais suja do que o seu pé direito.
Inconformada, molhada e premiada, eu olhei para o céu em busca de compreensão…
– Por que eu não fui para a Praia Grande dividir colchonete com meus irmãos? Por quê?
Duas horas depois de muita viadagem, desinfetantes, papo calcinha e horas no banho esperando que elas
desistissem de mim, lá fomos nós atrás de louro, arruda, sal grosso, roupas íntimas, lençóis, coisas vermelhas e
uma infinita lista de ingredientes que alimentam o bozó anual das passagens de ano.
—————-Continua…
adorei a forma como contast a tua historia. deves ser uma pessoa mto interessante para conhecer. tambem tenho
uma rott chamada sasha e tb ja fui vitima de pizar na merda dela… lololol chamo-me manu e moro no porto em
portugal. prazer