Amizade é como o amor: se não for recíproca, não tem porque existir
Quem é o seu melhor amigo? Pergunta difícil. A última vez que eu respondi a esta pergunta foi na pré-adolescência e
lembro que, alguns dias depois, eu tive a minha primeira briga física.
Terceira série do primário, oito anos de idade, escola nova. A mudança do colégio particular para a escola pública
ainda cheirava receio e timidez. Não sabia como me apresentar para as outras crianças. Não sabia o que falar, nem
como falar. Escolhi uma mesa e uma cadeira e calei-me diante de todas aquelas carinhas de novidade.
A Silvia foi a primeira pessoa que falou comigo. Nessas horas, o primeiro a se manifestar de forma educada é sempre
o que acaba passando o recreio com a gente. Desde o primeiro dia de aula, eu e a Silvia passamos a dividir
intervalos, conversas e confidências infantis. O suficiente para eu responder, dois anos depois em seu questionário
que circulava pela classe, que ela era minha melhor amiga.
Naquela mesma semana, jogando queimada com uma turma no pátio da escola, estourou uma discussão sobre as regras no
meio do jogo. Não lembro como começou, acho que apaguei da memória esta parte. Em uma briga de alunos, normalmente
ninguém tem razão e nem se sabe porque ela acontece. De repente estamos rodeados de crianças que transformam o local
em arena e fica impossível amarelar. Ou você bate, ou vai levar a fama de fracote por anos consecutivos. Só lembro
da Silvia vindo pra cima de mim com o corpo pedindo para me esbofetear. Não acreditei que ela pudesse aderir aos
apelos dos outros que pediam em coro que a briga começasse, não era possível que ela levasse adiante um bate boca
que nos custaria tanto tempo de boa amizade. Nada do que tivesse sido dito ou feito, justificaria aceitar os gritos
de guerra que nos cercava. Minha memória pode ter apagado provocações, explosões ou qualquer outra manifestação da
minha parte que tivesse despertado a ira da minha amiga, mas lembro de ter tido discernimento suficiente para
segurá-la pelos ombros e dizer: “Sil, você é minha melhor amiga. Não vou brigar com você.” Não adiantou. Ela
precisava daquela briga, não tinha nada a ver com o jogo, era uma questão de sobrevivência. Melhores amigos são como
irmãos. Em algum momento, por ciúmes, rivalidade, inveja, amor, ódio ou excesso de convivência e interferência,
haverá agressão física. Não interessam os motivos, é a única forma de nos defendermos de alguém que amamos mas que
não queremos tão próximos.
Briga de mulher, nenhuma novidade. Tufos de cabelos nas mãos, agarração dolorida, calcinhas aparecendo e um bando de
meninos aplaudindo e pedindo bis. Um vexame público desnecessário. Mulheres não nasceram para este tipo de combate.
Descobri, naquele dia, que eu não sei bater. Defendo-me muito bem, me esquivo o suficiente para não me ferir, mas
não resisto aos ataques às coisas do meu coração.
Em um determinado ponto da briga, minha melhor amiga, da forma mais convincente que pôde, me disse: “Eu nunca fui
sua amiga.”
Queria que a minha memória fosse capaz de apagar esta parte da história, mas ela nunca me obedece. Arquiva e deleta
o que bem entende.
Foi uma briga sem grandes traumas físicos, com perdas, perdedoras e alguns anos de questionamentos necessários para
que eu aprendesse a compreender e a perdoar. Depois disso, todos os amigos ficaram no mesmo patamar, todos os amores
se tornaram eternos. Passei a olhar as pessoas como uma mãe olha seus vários filhos: posso até ter mais afinadades
com um do que com o outro, mas não vou fazer ranking das pessoas que eu amo. Nem por decreto me submeti às brigas de
rolar no chão, nem com amigos, inimigos ou irmãos. Um nocaute como aquele foi suficiente para não querer repetir a
dose. Prefiro a fama de fracote.