Será o marido da mulher do pires?
Sempre que baixa o espírito da Madre Tereza em mim, eu acabo indo contra os gritos da minha intuição. Fico achando
que o mundo é cor de rosa e quero sair perdoando e semeando a bondade. Eu sabia que a minha decisão de retomar as
drenagens linfáticas com a mulher do pires tinha acontecido depois da minha ida à terapeuta e isso me parecia
racional mas, mesmo assim, algo me dizia que tinha a ver com a presença do espirito bom que segurava meus lábios de
um canto ao outro naquele momento.
Com toda a naturalidade do mundo e como se nada tivesse acontecido, liguei para a mulher do pires para agendar uma
nova sessão.
– Ué! Não ia viajar?
– Eu menti para você Célia. Estava muito triste, não queria mais fazer as massagens, aquele não tinha sido um dia
bom e eu não soube como te dizer. Será que você pode me desculpar? Estou arrependida e agora que estou melhor achei
que te devia uma explicação. Eu agi de forma insensata com seu poodle e gostaria muito de continuar fazendo as
massagens contigo. Você é muito boa profissional.
É incrível a capacidade que as pessoas tem de matar um assunto sem discussão quando você admite um erro, uma
mentira, um defeito. Dona Célia ficou calada uma fração de segundo. Com a orelha colada no aparelho telefônico, ouvi
a mulher respirar fundo, balbuciar e dizer que eu poderia ir no horário combinado da primeira vez e no dia que eu
achasse conveniente, bastaria ligar com antecedência de uma hora.
Para alguém que tem a agenda lotada eu até estranhei, mas acabei confirmando para o dia seguinte.
Encostei o carro na frente do prédio procurando por uma vaga na rua. O porteiro do prédio saiu sorridente da guarita
e veio em direção a mim.
– Boa noite! Tudo bem com o senhor?
– Quanta alegria ver a senhora. Deixa que eu estaciono o carro, tem uma vaga sobrando na garagem, eu coloco ele lá
para você, quer dizer, para a senhora. É mais seguro.
Estranhei, muito…
– Ahn… Não tem problema? As vagas do prédio não são só para os moradores?
– Não, de forma alguma! Quer dizer, são. Mas a senhora aqui é uma exceção.
Pronto. Não entendi mais nada. Mas aceitei a gentileza diante de tantos dentes e brilho nos olhos. Se não fosse tão
surreal encontrar tamanha atenção na cidade de São Paulo, eu teria realmente me sentido importante.
A inusitada situação com o porteiro acabou fazendo com que eu subisse sem ser anunciada. Mas só me dei conta disso
quando estava no hall, de frente para a porta de entrada do apartamento da dona Célia. Antes que eu cogitasse a
possibilidade de dar meia volta e avisá-la pelo interfone, ouvi um estrondo de panelada em sua porta. Dei graças a
Deus de estar do lado de fora e já ia correndo para o elevador quando a porta se abriu e eu tive que fazer cara de
mulher invisível. Deve ter funcionado. Um senhor passou bufando por mim como se eu não existisse. Já a dona Célia,
não sei se de raiva ou de vergonha, tinha todo o sangue concentrado na cabeça. Sequer assimilou o descuido da
portaria, pediu que eu entrasse e virou-se como se eu fosse de casa.
Pulei a frigideira, peguei-a do chão e coloquei-a na mesa da cozinha. Não fiz cerimônias. Precisava evitar maiores
constrangimentos.
Dona Célia dirigiu-se ao banheiro e voltou de lá como se nada tivesse acontecido. Fiz o mesmo. Eu é que não ia tocar
no assunto. Tirei a roupa, coloquei em cima do sofá e lembrei que, por conta dos meus ascos mal resolvidos, dentro
da bolsa tinha um lençol e um creme que eu pretendia usar. Mas como é que eu ia contar para a mulher do pires que
tinha acabado de dar uma frigideirada no “marido”, que eu tinha levado meu lençol de algodão e meu próprio creme de
massagem? Diante daquele silêncio todo o meu discurso sobre alergia a não-tecido parecia não justificar que eu
abrisse a minha boca. –>Continua